domingo, 2 de setembro de 2012

Os quereres do povo


Rodolpho Motta Lima

A música popular – aqui como em qualquer parte do mundo - é sempre reveladora da alma do povo, seus gostos e desgostos, suas práticas, seus valores, seus “quereres”. Uso de propósito o plural popularizado por Caetano em composição que revela a complexidade dos desejos humanos: “eu te quero (e não queres) como eu sou”/“não te quero (e não queres) como és”...

Muitos desses quereres refletiram, lá pela metade do século passado, uma realidade em que esteve presente o preconceito, ainda que não fosse esse, intrinsecamente, o objetivo das mensagens. O nosso cancioneiro registra frases de compositores notáveis resvalando pelo politicamente incorreto: “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar“ dizia o verso de Wilson Batista em “Emília”, enquanto Lamartine Babo afirmava para a mulata “Eu quero o seu amor” e justificava com o fato de que a cor não pega...

Antes disso, uma das pioneiras da nossa canção popular, Chiquinha Gonzaga, imortalizou um carnavalesco refrão de afirmação pessoal : ”O abre alas, que eu quero passar”, que, em uma versão mais moderna e provocadora, nos anos 70, Sérgio Sampaio transformou em “Eu quero é botar meu bloco na rua”. Uma euforia que seguramente Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito não mostravam, em versos que traduziam o amor mal resolvido, na antológica “A flor e o espinho”: “Tira o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”.

Na vida, porém, e felizmente, nem tudo são espinhos e o amor se afirma como um querer perpétuo nos versos da “Andança” de Paulinho Tapajós, Danilo Caimmy e Edmundo Souto (“Por onde for, quero ser seu par”) ou de “Corcovado”, do Tom Jobim (”Quero a vida sempre assim com você perto de mim até o apagar da velha chama”). O desejo de enriquecer o amor está presente na deliciosa “Noite do meu bem” de Dolores Dura (“Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem”) , ou na tão surpreendente como bela metáfora de Martinho da Vila em “Disritmia”: “Eu quero ser exorcizado pela água benta desse olhar infindo” rivalizando com a “Tatuagem” do Chico Buarque (“Quero ficar no seu corpo feito tatuagem , que é pra te dar coragem de seguir viagem quando a noite vem”). Amor e humor se vinculam nos versos da “Irene” de Caetano (“Quero ver Irene rir”) ou na “Vitoriosa”, de Ivan Lins (“Quero sua risada mais gostosa”). E o sentimento amoroso segue assim, tema recorrente em nossas canções, no desejo simples de quem afirma, como Dominguinhos, “Eu só quero um xodó”, ou na tentativa de moldar o outro, nas palavras que Leoni fazia Paula Toller entoar: “Eu quero você como eu quero”...

O bucolismo resultante da integração do homem com a natureza nos deu “Casa no Campo”, em que Zé Rodrix e Tavito, na voz imortal de Elis (Veja o vídeo) imaginaram “carneiros pastando solenes no jardim”, ao lado de “um filho de cuca legal”, certamente um “filho” bem diferente daquele moleque, irreverente, malicioso e nada infantil que a marchinha de carnaval de Jararaca e Vicente Paiva, lá nos anos 30, imortalizou no verso “Mamãe eu quero mamar”....

A natureza tem estado muito presente em nossa música, em construção romântica da cumplicidade com as venturas ou desventuras  do homem. Cartola  implora em “Preciso me encontrar”: “Quero assistir ao sol nascer/Ver as águas dos rios correr/Ouvir os pássaros cantar”,  enquanto Edu lobo constrói sua Pasárgada com o nome de “Candeias”, desejando: “Quero ver a lua vindo por detrás da samambaia / Rede de palha se abrindo em cada palmo de praia”.

Os quereres do homem transcendem o mundo afetivo circundante de pessoas a quem ele ama ou do lugar que habita, quando ele se percebe um ser gregário, com responsabilidades sociais. A nossa música popular mostrou isso em momentos importantes e cruciais de nossa história recente, Milton Nascimento, com “Coração de Estudante”, gritava o desejo da liberdade: “Quero falar de uma coisa / Adivinha onde ela anda / Deve estar dentro do peito / Ou caminha pelo ar“. Lulu Santos popularizou um querer coletivo ao afirmar que queria “crer no amor numa boa / e que isso valha pra qualquer pessoa”, e mesmo o questionado comprometimento social de Roberto Carlos cunhou versos como “Quero levar o meu canto amigo a qualquer amigo que precisar”, enquanto Elis, nas palavras dos irmãos Valle (“Black is beautiful”), cutucava o preconceito e afirmava a etnia negra: “Eu quero um homem de cor, um deus negro do Congo ou daqui”. Preconizavam um ambíguo fim da tristeza os versos de Niltinho e Haroldo Lobo, nos fins dos anos 60: “Quero voltar aquela vida de alegria / quero de novo cantar”. Muitos anos depois, quando o povo já podia cantar, Cidinho e Doca foram fundo, no “Rap da Felicidade”, definindo-a com receita tão simples de entender quanto complicada de ver realizada: “Eu só quero é ser feliz, Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, E poder me orgulhar, E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.”. Cazuza tinha ido, um pouco antes, mais longe na complexidade do seu apelo: “Ideologia, eu quero uma pra viver”.

Com todos esses quereres, marcados ora pela simplicidade que a pureza abona, ora pela palavra criativa dos grandes poetas, e: mesmo sabendo que o passado já produziu desejos como o “mocotó” (de grande Jorge Bem Jor) ou o “ovo de codorna pra comer” (do ícone Luiz Gonzaga), a verdade é que não merecíamos estar ouvindo agora “Eu quero tchu, eu quero tcha”, do Shylton Fernandes. É ou não é? 

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