Criador da Gestapo |
É assustador que, numa suposta democracia, tremamos aos olhares furibundos e aos sorrisos sardônicos de certos brasileiros, que ocupam as cadeiras de ministros no Supremo Tribunal Federal. Eles são senhores absolutos do Brasil: há que temê-los, naturalmente.
Enio Squeff
Samuel Weiner gostava de contar
sobre sua experiência no Julgamento de Nuremberg, aquele que levou a um
tribunal internacional os maiores criminosos do Terceiro Reich. Como
brasileiro, representante da imprensa de um dos países vitorioso da
Segunda Guerra, Weiner tinha o direito de ficar fisicamente mais próximo
de alguns dos acusados. Os réus estavam encerrados em cubículos de
vidro, a prova de balas e, com um pequeno binóculo, Weiner, por pura
curiosidade, observava um a um os acusados, até chegar a Hermann
Goering, criador da Gestapo, um dos maiores criminosos da história,
co-responsável pelos campos de concentração nazistas. Aí Weiner parou.
Confessava que baixou o binóculo rapidamente; sentiu medo. O homem que o
encarou de dentro da cabine de vidro "tinha olhos de tigre" (sic).
Conforme Weiner, o interior de Goering, revelou-se em seus olhos, na
inteireza de sua crueldade inconcebível.
É um depoimento revelador, não só
sobre réus eventuais. No julgamento sobre o Mensalão, por exemplo, não é
aos réus que nos vem sendo dado mirar, mas os juízes. Não existem
comparações possíveis. A palavra medo, porém, não parece muito distante
do sentimento de qualquer brasileiro com um mínimo de consciência. Há
quem fale - sabe-se lá se, paranoicamente ou não- em ambiente de golpe
nas decisões que estão sendo tomadas.
Não parece uma questão estranha à
justiça ou ao poder. Aos fatos dão-se as dimensões que eles podem não
ter. Parece mais que tolice que a ação 470 seja considerada "o maio
escândalo da história do Brasil". Soa como absurdo tal consideração,
principalmente num país, como o nosso, em que em quatro anos foram
vendidas estatais sem qualquer transparência para os bilhões que lhes
foram ou não, devidamente dados. Basta, no entanto, que o poder julgue
fatos maiores do que são, e os envolvidos serão, então, maiusculamente
julgados.
Foi o que fez o Marquês de Pombal
no século XVIII, em Portugal. Ao atentado contra Dom José I - do qual o
monarca sobreviveu com não mais que alguns arranhões-- o então primeiro
ministro luso, fez um escarcéu. Imediatamente, alguns de seus
principais inimigos na aristocracia portuguesa seriam arrolados como
responsáveis pelo crime de lesa-majestade. O Marquês, diga-se, não se
limitou a torturar e a matar uma família inteira, do qual nunca se
provou qualquer culpa. Logo, seus juízes saíram à cata de culpados onde
quer que algum tugido ou mugido se fizesse ouvir. Em poucos anos, até a
queda do Ministro, os inimigos, falsos ou verdadeiros, os criminosos ou
não, eram todos enclausurados, mortos, cruelmente torturados, ou
obrigados a se exilar: tudo, porem, na mais perfeita ordem legal - que
disso o marquês não descurava nunca. Uma vez que eram proibidos os
contraditórios, valiam as interpretações jurídicas do momento: se não
havia provas, impunham-se as evidências.
À época, não se excluíam as
torturas para os processos legais. Eram suficientes, portanto, as
confissões dos réus. Depois de algumas sessões de tortura, muito
dificilmente alguém não admitia que não tivesse participado fosse do que
fosse - não só das conspirações dos Jesuítas - cuja a ordem o Marquês
logrou que o Papa extinguisse ( o ouro do Brasil operava milagres na
Santa Sé, pelo menos naqueles tempos), mas de que tinha ligações com
todos os crimes do mundo - não excluídos os maiores absurdos, fosse da
morte de Cristo. Ou do pecado original. Era só os juízes do Marquês
quererem - pronto, lá estava o réu quanto menos, na prisão ou no exílio.
Parte da mídia brasileira apoiou o
golpe da Suprema Corte de Honduras; e, quando houve o impeachment de
Fernando Lugo, ela foi coerentemente a favor do congresso paraguaio. Já
que os militares não são mais massa de manobra, como foram nos anos 70
em toda a América Latina, impõe-se, agora, qualquer legalização, seja
pelos congressos, sejam pelas pelos poderes judiciários de alguns
países. Os golpes não podem parecer que tais: têm de ostentar o selo da
legalidade.
A questão maior, por isso, parece ser sobretudo o medo.
Qualquer pessoa de bom senso que
passou pela ditadura militar, deve ter em alta conta o cenho carregado e
enraivecido do ministro Joaquim Barbosa: ele já deixou claro, no grande
evento televisivo em que se transformou o julgamento da ação 470, que
não lhe agradam, nenhum pouco, qualquer balbucio de contraditórios a
suas teses. Assim também em relação ao sorriso melífluo do ministro
Marco Aurélio Mello ; há vários partidos no chamado caso do mensalão. Só
lhe ocorre mencionar o PT. Fica-se na dúvida: não será temerário
criticá-lo por considerar um escroque, como Roberto Jefferson, um digno
"servidor da pátria" como ele declarou?
Restam muitas dúvidas, todas certamente temerárias.
De fato, qual o próximo capítulo
televisivo, a merecer capas das revistas e jornalões que querem ver o
ex-presidente Lula varrido da história? O exemplo do excelso Marquês de
Pombal talvez seja um exagero - mas não deveria ser custoso ou mera
paranóia ao ex e à atual presidenta porem-se em alerta. A ser verdade
verdadeira, que provas não são necessárias para condenar alguém,
dispensem-se inclusive as torturas. Haverá sempre evidências de que
todos sejamos criminosos, incluindo-se aí não só os hoje e agora
valorosos José Dirceu o José Genoíno. Eles não precisam mostrar sua
santidade, por favor (já que o ônus da sua inocência deve-se a eles,
apenas a eles). Basta, para nós, que não sejam culpados. E seremos, de
novo, aquele pobre país que precisa de heróis
Sim, os brasileiros voltamos a
ter medo. Como os juristas parecem se propor a guardar um silêncio mais
que obsequioso (ou a palavra seria outra?) - aos espantados e
inconformados com as sentenças que vão sendo atiradas a torto e a
direito - sem que o país possa fazer nada (a começar pela decidida
aprovação da grande imprensa), resta constatar, realmente, um "cheiro"
de 64 no ar.
A propósito, será certamente
apenas um desejo que a emocionante carta da filha de José Genoíno venha a
comover alguns juízes do STF. Estamos vivendo aqueles inesquecíveis
momentos em que a Justiça comete injustiças. Não é de se desprezarem os
sinais
Aliás, pode parecer apenas
fortuito que Samuel Weiner sentisse medo do o olhar de um autêntico
assassino genocida, como foi Hermann Goering. Mas parece bem mais que
assustador que, numa suposta democracia, tremamos aos olhares furibundos
e aos sorrisos sardônicos de certos brasileiros, que ocupam as cadeiras
de ministros no Supremo Tribunal Federal. Eles são senhores absolutos
do Brasil: há que temê-los, naturalmente.
*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
Fonte: Carta Maior
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