Por Urariano Mota
Recife (PE) - No Recife, no sábado 13 de
outubro, estamos no Bar Mamulengo, em um encontro que reúne os melhores
violonistas e chorões da cidade. Estamos aqui para uma confraternização
com Luís Nassif, jornalista e escritor, que ama e divulga os músicos
pernambucanos lá em São Paulo. E quando digo estamos, e me incluo
indevido numa confraria de monstros das cordas, quero dizer: estão Beto
do Bandolim, Henrique Annes, Lalão, Racine, Ravel, o próprio Nassif, e
mais músicos na plateia, nas mesas em torno, que inibidos não vêm ao
pequeno círculo onde se destacam os bambas e microfones.
Existe uma atmosfera que faz a gente ser bom, franco, verdadeiro,
retornar amizades ou fazer amigos pelas revelações mais sérias, como o
grande Nassif me faz à mesa, como se falasse nada, e que derrubam as
defesas deste pernambucano por essência desconfiado. Ele seria capaz de
me dizer, como por outras palavras me disse: “eis porque o meu amor
percorre o mundo desta maneira”. E a gente olha para longe, para não se
trair, porque está entre a comoção e a mais irrestrita solidariedade. As
vozes ao redor ajudam a gente a disfarçar, ninguém é louco de pedir
silêncio, porque há sempre um ruído nas manifestações coletivas, mesmo
nas mais solenes.
Então vem dos jovens com síndrome de Down, ali presentes, o melhor.
Uma bela mocinha com os seus olhinhos onde brilha uma irreprimível
simpatia, com seus olhinhos puxados que são uma nascente de amor, beija
no rosto o violonista Lalão. Ele, mulato escuro, enrubesce na penumbra
do momento. Ficou confuso, a sorrir para a mocinha. Ao que ela lhe pede,
pois grande é o cerco e cercania das atrações do sentimento: “Toca Olha
pro céu meu amor”. Ela pede e sai. Ele resmunga para mim: “olha pro céu
meu amor...”. E eu sei o que isso significa. Lalão quer apenas dizer,
tocar uma coisa tão boba, para um músico da minha altura e talento, era
só o que faltava.
Eu não sei se existe uma hora em que a leveza toca o coração do
grande artista. Eu não sei se há um instante em que um afeto simples,
singelo, idiota, como resposta a um beijo assoma e revolve o peito de
um virtuose, eu não sei, enfim, se a vaidade da gente cede o passo a uma
compreensão total, absoluta, que vem da grande arte. Sei que Lalão toca
“Olha pro céu, meu amor”. A mocinha e outros jovens começam a dançar,
numa confraternização, como se fossem a própria tradução da música em
corpos e alegria.
Pois assim como o beijo que tem uma duração para toda a vida, que vai
além do segundo em que os lábios se encontraram, cresce mais para mim a
percepção daquele instante. Ali houve uma contaminação da doença que
tem o nome de solidariedade. No salão, em todo o bar houve uma onda
solidária, a ponto de fazer Lalão chamar Henrique Annes para tocar a seu
lado. E ficarem eles mesmos, os dois geniais violonistas, a tocar puros
como dois grandes excepcionais. Como se fossem dois meninos grandes que
fazem dos acordes olhinhos puxados.
Os jovens especiais dançam. Então as pessoas que pensamos serem
diferentes em tudo de nós, “eles veem a vida em tons sombrios, ou de
angustiado amarelo, ou de explosivo vermelho, de melancólico azul”,
então pessoas assim, para nossa descoberta, veem balões multicoloridos
subindo no céu. Talvez delas, mais do que outras, seja esse direito.
Elas veem, dançam e se encantam, pois grande é a procura de alegria, e
com mais necessidade em quem no seu natural não a possui. Isso deixa a
gente também meio bobo, com vontade apenas de repetir: foi numa noite,
igual a esta, que tu me deste o teu coração, o céu estava assim em
festa, pois era noite de são João...
Não sei se Lalão viu. Ou se viu, como bom artista, viu e guardou
escondido no seu coração. Para ninguém ele disse naquele minuto, pois
parecia tocar alheio àquele mar de felicidade, que se espraiava na
singela composição, no modo e humildade com que ele a tocava. Ele fez
que não viu que estávamos todos felizes ao ver a felicidade dos jovens
de Down a dançar. A gente se amarrando pra não cantar em voz bem alta os
versos
“Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
O momento em imagens com a duração de um beijo ficou no vídeo abaixo:
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