A revista Carta Capital publica esta semana matéria sobre Madalena,
travesti, negra, eleita para a Câmara de Vereadores de Piracicaba, no
interior de S. Paulo. O que deveria ser um texto capaz de mostrar a
importância desse fato histórico acabou por se revelar mais uma
instância do preconceito linguístico tão fartamente documentado em nossa
imprensa. Fui obrigado a escrever uma carta à redação. Aqui vai ela
para leitura compartilhada de todos os que se indignam com esse tipo de
exploração bisonha das diferenças linguísticas.
Caro professor Bagno, como vai?
Escrevo-lhe apenas para dizer quão triste fico com uma interpretação
rasa e apressada do meu texto como a que me chega. Não tenho uma teoria
linguística calcada em uma década de pesquisa que precise exemplificar
com qualquer excerto que me caia nas mãos, então não vou teorizar sobre
suas intenções, como o senhor se arvorou ao direito de fazer comigo. Só
digo, não em minha defesa, mas em defesa da revista em que trabalho (e
que não compartilha dos dois pesos e duas medidas da “nossa mídia
conservadora e mentirosa") que decidi reproduzir o “linguajar” de
Madalena porque é assim que ela falará na Câmara dos Deputados (sic),
quando o assumir o inédito cargo com toda sua pompa e glória. Madalena é
dessas figuras ímpares, respeitáveis, admiráveis. Não teria eu coragem
de “traduzir” ou “normatizar” sua fala. Aplicar uma norma culta a seu
modo de fala seria tão grotesco quanto o senhor julga ser o contrário.
Madalena não peca por desvios de um plural aqui ou uma concordância ali:
fala uma língua sem relação com a escrita, de um jeito todo seu. É belo
o jeito que ela fala: e mais, ele reproduz instantaneamente o local
onde nasceu e viveu, seu (pouco) acesso à educação, seu total status de
não pertencimento à uma sociedade de “elite” à qual invadirá em 1º de
janeiro, quando tomar posse, a despeito das ameaças de morte.
Fomos até Madalena para retratar sua vitória pessoal. Após algumas horas
de entrevista, de lá saí com uma pequena aula de política brasileira.
Mas, acima de tudo, o objetivo era retratar, o mais veridicamente
possível, a aura daquela figura que só chegará ao público por meio da
imprensa.
Por que não se fez o mesmo em outros textos da edição? Por que qualquer
pessoa com um conhecimento mínimo de jornalismo sabe que diferentes
pessoas escrevem diferentes textos. Em Carta Capital, não há
padronização acachapante de ideias, nem de narrativa. O texto como
publicado foi de responsabilidade inteiramente minha, do início ao fim.
Se o senhor de fato tivesse feito a pesquisa que mencionou, constataria
que em uma série de outros textos publicados por mim na mesma seção o
mesmo procedimento de “tacanha reprodução”, foi realizado. Nem só com
pessoas negras, pobres e travestis, devo afirmar. Confesso desconhecer
sua tese e, agora, sinto-me pouco disposto a buscá-la. Mas se ela cria
pressupostos que sugiram apagar a riqueza da língua em narrativas da
imprensa para evitar possíveis mal-entendidos pseudopsicológicos como
esse, devo dizer que passará ao largo de minha vida profissional.
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