terça-feira, 6 de novembro de 2012

Linguística: preconceito de quem?

A revista Carta Capital publica esta semana matéria sobre Madalena, travesti, negra, eleita para a Câmara de Vereadores de Piracicaba, no interior de S. Paulo. O que deveria ser um texto capaz de mostrar a importância desse fato histórico acabou por se revelar mais uma instância do preconceito linguístico tão fartamente documentado em nossa imprensa. Fui obrigado a escrever uma carta à redação. Aqui vai ela para leitura compartilhada de todos os que se indignam com esse tipo de exploração bisonha das diferenças linguísticas.



Caro professor Bagno, como vai?

Escrevo-lhe apenas para dizer quão triste fico com uma interpretação rasa e apressada do meu texto como a que me chega. Não tenho uma teoria linguística calcada em uma década de pesquisa que precise exemplificar com qualquer excerto que me caia nas mãos, então não vou teorizar sobre suas intenções, como o senhor se arvorou ao direito de fazer comigo. Só digo, não em minha defesa, mas em defesa da revista em que trabalho (e que não compartilha dos dois pesos e duas medidas da “nossa mídia conservadora e mentirosa") que decidi reproduzir o “linguajar” de Madalena porque é assim que ela falará na Câmara dos Deputados (sic), quando o assumir o inédito cargo com toda sua pompa e glória. Madalena é dessas figuras ímpares, respeitáveis, admiráveis. Não teria eu coragem de “traduzir” ou “normatizar” sua fala. Aplicar uma norma culta a seu modo de fala seria tão grotesco quanto o senhor julga ser o contrário. Madalena não peca por desvios de um plural aqui ou uma concordância ali: fala uma língua sem relação com a escrita, de um jeito todo seu. É belo o jeito que ela fala: e mais, ele reproduz instantaneamente o local onde nasceu e viveu, seu (pouco) acesso à educação, seu total status de não pertencimento à uma sociedade de “elite” à qual invadirá em 1º de janeiro, quando tomar posse, a despeito das ameaças de morte. 

Fomos até Madalena para retratar sua vitória pessoal. Após algumas horas de entrevista, de lá saí com uma pequena aula de política brasileira. Mas, acima de tudo, o objetivo era retratar, o mais veridicamente possível, a aura daquela figura que só chegará ao público por meio da imprensa. 

Por que não se fez o mesmo em outros textos da edição? Por que qualquer pessoa com um conhecimento mínimo de jornalismo sabe que diferentes pessoas escrevem diferentes textos. Em Carta Capital, não há padronização acachapante de ideias, nem de narrativa. O texto como publicado foi de responsabilidade inteiramente minha, do início ao fim. Se o senhor de fato tivesse feito a pesquisa que mencionou, constataria que em uma série de outros textos publicados por mim na mesma seção o mesmo procedimento de “tacanha reprodução”, foi realizado. Nem só com pessoas negras, pobres e travestis, devo afirmar. Confesso desconhecer sua tese e, agora, sinto-me pouco disposto a buscá-la. Mas se ela cria pressupostos que sugiram apagar a riqueza da língua em narrativas da imprensa para evitar possíveis mal-entendidos pseudopsicológicos como esse, devo dizer que passará ao largo de minha vida profissional.

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