A grande maioria da sociedade brasileira mantém seus olhos sobre o plenário da Câmara dos Deputados, aguardando pela aprovação urgente do fim do fator. E espera que o gesto do veto presidencial não se repita, como ocorreu tristemente em 2010.
Paulo Kliass*
A maldade foi instituída há treze anos atrás. Atuando
na seqüência da famosa Reforma Previdenciária de 1998, o governo FHC
encaminhou um projeto de lei ao Congresso Nacional, alterando um
conjunto de regras do Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Transformado na Lei n° 9.876/99, o maior prejuízo que a nova medida
trazia ficou conhecido como “fator previdenciário”.
O
momento era de grande entusiasmo do “establishment” com as
recomendações do receituário do neoliberalismo. A previdência social já
era objeto de bombardeio cotidiano por parte dos grandes meios de
comunicação, embalados por informações falseadas, que os próprios
responsáveis do governo deixavam escapar. Déficit estrutural, bomba de
efeito retardado, modelo falido e demais figuras do gênero eram as
caricaturas que a imprensa utilizava em sua missão de desconstruir o
nosso regime previdenciário no imaginário popular.
O
plano estratégico obedecia a um cronograma mensal, quando uma nova
edição do boletim do Ministério divulgava as contas e a situação da
Previdência em nosso País. O enredo implicava a divulgação do novo
número bombástico a respeito do “estrondoso déficit previdenciário”,
sempre da ordem de vários e assustadores bilhões de reais. Porém, ao
misturar alhos com bugalhos, as autoridades do governo acabavam por
contribuir para a desinformação a respeito da situação real das contas
do RGPS.
Criação artificial da crise da Previdência: os 4 aspectos
O
primeiro aspecto dizia respeito aos escândalos de corrupção envolvendo o
sistema. Desde as grandes negociatas no atacado, até os pequenos
delitos relativos a pagamento de pensões indevidas, óbitos não
comunicados, licenças sem base médica justificada e similares. Ora, eram
casos que diziam respeito à nossa natureza cultural, à forma
particularmente tupiniquim de estabelecer a relação com o poder público.
Tinha pouco a ver com a sustentabilidade do regime previdenciário, do
ponto de vista de seu equilíbrio atuarial e financeiro. A resposta para
esse tipo de dificuldade passaria por medidas de fortalecimento na
fiscalização, maior rigor na punição e mais transparência nas
informações.
O segundo aspecto referia-se à
insistência mal intencionada de somar o conjunto do pagamento de
benefícios previdenciários e compará-lo com as fontes de receita. E aí,
realmente, aparecia um descompasso. Mas essa diferença estava baseada em
uma decisão da Assembléia Nacional Constituinte em 1988, quando se deu
um importante passo na direção da inclusão social e da universalização
da cidadania. Foi o reconhecimento do direito dos benefícios
previdenciários aos trabalhadores do campo, até então excluídos de
qualquer acesso ao sistema do INSS. E ao fazê-lo, as contas do RGPS
passaram a exibir uma rubrica de despesa, sem que tais beneficiários
houvessem contribuído ao longo de sua via econômica ativa.
Apesar
de justíssima como medida de política pública, a contabilidade adequada
exigia que o Tesouro Nacional realizasse a contrapartida dessa
contribuição de cada beneficiário rural, pois a responsabilidade não
poderia ser imputada a algum desajuste do regime previdenciário. Aquela
havia sido uma decisão da Nação.
O terceiro
aspecto consistia na soma agregada das despesas de regimes
previdenciários completamente díspares, como o RGPS e os regimes
próprios de previdência dos funcionários da União, dos Estados, dos
Municípios e dos militares. Por se tratarem de modelos completamente
distintos, os valores também destoavam. O INSS sempre apresentou um
valor médio de benefícios bem baixo, quando comparados aos valores pagos
aos aposentados e pensionistas da administração direta. Além disso, o
Estado tampouco recolhia simbolicamente às contas dos fundos dos regimes
próprios à sua cota parte como empregador. Assim, as contas estavam
sistematicamente deficitárias.
O quarto aspecto
envolvia o “esquecimento” sistemático de valores igualmente bilionários
que deveriam estar presentes pelo lado da receita do RGPS, mas não eram
contabilizados. E aqui me refiro aos inúmeros casos de isenção de
contribuição previdenciária (entidades filantrópicas, clubes de futebol,
instituições religiosas, microempresas, etc) e os números
escandalosamente bilionários de sonegação conhecida ou dívidas enormes
em arrastadas disputas judiciais. Trata-se também de situações em que a
responsabilidade não pode ser imputada a um suposto desequilíbrio
estrutural do sistema previdenciário.
A criação do fator para reduzir o valor dos benefícios
Assim,
em nome do combate a esse falso déficit alardeado aos quatro ventos,
começam a surgir as panacéias conhecidas por todos nós. E as sugestões
de ajuste sempre sugeriam a busca do equilíbrio a partir da lógica de
redução das despesas – ou seja, do corte de benefícios. Durante o
período de inflação crônica e elevada, as dificuldades para a realização
das maldades eram menores: bastava um reajuste atrasado por alguns
dias, com um índice abaixo da correção adequada. E pronto: o valor real
dos benefícios estava abaixo do que deveria ser de fato. Era o fenômeno
que os livros de economia chamam de imposto inflacionário. O Estado e os
grandes agentes econômicos conseguem “arrecadar” mais do que têm
direito, apenas com esse tipo de estratégia político-financeira, dos
setores que não conseguem se proteger da inflação.
Com
a estabilidade alcançada a partir do Plano Real, em 1994, passou a
surgir mais dificuldade em escancarar a tão desejada redução do valor
dos benefícios. O fator previdenciário caiu como uma luva e veio
“legalizar” essa estratégia de colocar no colo dos (atuais e futuros)
aposentados e pensionistas a conta de ajuste do sistema. Pelo novo
método de cálculo dos valores dos benefícios, os trabalhadores deveriam
passar mais anos na ativa para que não houvesse perdas nos valores dos
benefícios. Era isso o que se depreendia da aplicação da complicada
fórmula constante no anexo da lei. Caso quisessem manter sua expectativa
de direitos e se aposentar na idade prevista até então, o fator
promoveria redução nos valores a receber dali para frente. Em dimensões
expressivas, podendo chegar a perdas de 30% e mesmo 50% do poder de
compra dos benefícios.
A extinção do fator de 2010 e o veto de Lula
E
assim ficou. Apesar de todo o amplo movimento social contrário à
medida, o fator foi incorporado de fato aos cálculos do RGPS. A
generalização das perdas previdenciárias continuou, mesmo depois de
2003, quando o partido que mais havia lutado contra a medida chegou ao
poder – o PT com Lula Presidente. O fator previdenciário continuou
imexível. Já em seu segundo mandato, o governo foi surpreendido pelo
próprio Congresso Nacional, que chegou a aprovar o fim do fator
previdenciário, ao embuti-lo no texto da Medida Provisória 475/99, que
tratava do reajuste dos benefícios. Transformada na Lei n° 12.254/10, a
medida atravessou a Praça dos 3 Poderes para receber a rotineira sanção
presidencial. Mas Lula, aconselhado pela área econômica, decidiu por
vetar o dispositivo que extinguia o fator previdenciário.
Como
a maioria das entidades da área sindical e dos aposentados nunca se
acomodou face a tal situação, a medida volta novamente agora à agenda
política e está na pauta de votação no Congresso Nacional. O Senado
Federal já aprovou o PL n° 3.299/08, que extingue o fator
previdenciário. E a proposição deveria entrar em votação na Câmara dos
Deputados, assim que a ordem do dia for destravada pelas medidas
provisórias. Ao que tudo indica há um grande acordo para que seja
aprovado um Projeto Substitutivo do deputado federal Pepe Vargas
(PT/RS), atualmente Ministro do Desenvolvimento Agrário. Essa proposta
alternativa é a que institui a chamada regra dos “95/85”. Isso significa
que será estabelecido um pré-requisito mínimo para poder se aposentar,
envolvendo a idade da pessoa e o tempo de contribuição. No caso dos
homens, um mínimo de 60 anos de idade e 35 anos de contribuição – total
de 95. No caso das mulheres, 55 anos de idade e 30 anos de contribuição –
total de 85.
O PL em pauta na Câmara dos Deputados
No
entanto, há resistência mesmo assim em setores do governo, que temem
pelo aumento das despesas previdenciárias. Tanto que sugerem mudar a
base de cálculo do valor dos benefícios, que antes era a média dos
últimos 36 meses de contribuição. Assim, de acordo com o texto do
Projeto Substitutivo em negociação, o valor da pensão passaria a ser
calculado com base em 70% do total das contribuições do indivíduo ao
longo de sua vida. Restaria ainda uma dúvida jurídica e uma pendência
judicial, a ser apreciada pelo STF, a respeito do tratamento a ser
conferido às aposentadorias já concedidas sob a vigência do fator desde
1999, que tiveram seus valores injustamente reduzidos.
Ainda
que tardia, a correção dessa injustiça social é bem vinda. Não há o que
temer pelo equilíbrio das contas previdenciárias. Como já foi
demonstrado ao extremo, até o momento atual o sistema está atuarialmente
calibrado, no que se refere aos trabalhadores urbanos. O impacto
relativo ao passivo dos aposentados rurais é quase nulo, pois todos
recebem um beneficio equivalente a um salário mínimo. A grande maioria
da sociedade brasileira mantém seus olhos sobre o plenário da Câmara dos
Deputados, aguardando pela aprovação urgente do fim do fator. E espera
que o gesto do veto presidencial não se repita, como ocorreu tristemente
em 2010.
*Paulo Kliass é Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e
doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior
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