O mapeamento dos erros que levaram ao incêndio na boate Kiss expõe as omissões guardadas sob os tapetes de todo o País
“Vou te dizer. Se acontecesse alguma coisa parecida na festa de sábado
eu já estaria morta”. Ouvi a frase durante o almoço ainda na
segunda-feira 28. Minha amiga não estava em Santa Maria. Estava em São
Paulo, em uma badalada casa noturna da zona oeste.
Àquela altura, estavam praticamente mapeados todos os fatores que
levaram à morte de 234 pessoas, a maioria jovens universitários, e
deixou outros 118 feridos – mais de 70 ainda em estado crítico – no
município gaúcho. Dois empresários e dois músicos da banda estavam
detidos. Não tardou apara se descobrir que a boate Kiss não tinha alvará
de funcionamento e o auto de vistoria do Corpo de Bombeiros estava
vencido. Havia apenas uma porta de saída, quando, por suas dimensões,
deveria ter duas. A comunicação entre os funcionários era falha – há
relatos de que, sem saber o que acontecia, seguranças barravam a
passagem das pessoas a fugir do fogo. A festa tinha mais gente do que
sua capacidade. Por fim, com materiais inflamáveis no teto, a casa não
poderia receber um show de fogos, a atração da banda da noite.
Não é difícil, portanto, explicar o que aconteceu em Santa Maria. Há
indícios de negligência em cada canto. Difícil é pensar o quanto seria
simples evitar tragédias do tipo. E que a receita para a tragédia não
era exclusiva da Kiss (Dia desses, conta a mesma amiga, um garçom cruzou
os corredores de uma casa noturna com uma garrafa de champanhe envolta
de “cones faiscantes” para brindar um aniversariante. Algum santo
protetor impediu que o mimo esbarrasse em material inflamável).
O incêndio em Santa Maria abriu uma caixa de pandora que só agora
parece óbvia: corremos riscos o tempo todo. E a sensação de justiça
proclamada contra os responsáveis diretos e indiretos pelo episódio não
servirá para purgar acidentes evitáveis Brasil afora – não só em casas
noturnas.
Ainda assim, quem resolveu levantar o tapete para onde foram levadas
as lacunas jurídicas e anos de omissão esbarrou numa série de
dificuldades para traçar um panorama exato sobre o despreparo de
empresas e do poder público para garantir que tantas vidas não sejam
novamente ceifadas com tanta facilidade.
Como a transparência, nesses casos, é artigo de luxo, fica difícil descobrir onde os problemas começam. Só como terminam.
Empresários reclamam do excesso de burocracia e condicionantes para
operar na legalidade. Em São Paulo, onde a prefeitura hoje garante que
uma boate como a Kiss não funcionaria em razão da legislação, o
responsável por liberar licenciamentos até pouco tempo atrás foi
denunciado por supostamente receber propina para aprovar empreendimentos
suspeitos. Ele acumulou durante anos um patrimônio incompatível com a
sua renda.
A lei, portanto, parece ser o menor dos problemas.
Na maior cidade do País há apenas 19 funcionários da prefeitura
responsáveis por fiscalizar a aplicação das normas em cerca de 500
estabelecimentos de grande porte. Mais: não existe em lugar nenhum um
sistema de monitoramento para saber se o local frequentado está
adequado. Se tiver boa vontade, o dono do estabelecimento pode afixar o
documento em lugar visível. Mas só se tiver boa vontade.
As atenções sobre o assunto, de toda forma, parecem ter despertado
uma espécie de espírito vigilante: graças aos jornais, sabemos, por
exemplo, que a distância máxima a ser percorrida até um extintor não
deve ultrapassar 20 metros; que a distância máxima até a saída deve ser
de 68 metros se houver chuveiros e de 45 metros se não houver chuveiros.
Ta,bém aprendemos a desconfiar de quem confina clientes sem garantir ao
mesmo uma porta a mais para a saída.
Até domingo pela manhã, dificilmente estas regras e números estariam em destaque.
Por aqui as coisas são assim: parecemos sempre pegos pelo despreparo e
acordados aos sobressaltos de uma profunda letargia. Sabemos que vai
chover em janeiro e que há construções em áreas de risco, mas só
lembramos de resolver o problema quando o deslizamento já ocorreu. Não
há mapeamento, não há cultura da prevenção. Não prestamos sequer atenção
quando uma voz em off acompanha os desenhos sobre os pontos com saídas desobstruídas e barras antipânico do cinema.
Por este motivo, chama a atenção, em casos de comoção desta
magnitude, a profusão de especialistas de todos os matizes para vender
explicações possíveis para evitar no futuro a tragédia não evitada ontem
(é assim em acidentes aéreos, desastres naturais e em grandes
incêndios). Dessa vez as assessorias de imprensa foram ágeis em tentar
emplacar suas pautas. Uns usaram o gancho para pedir a divulgação de um
curso sobre atendimento médico. Outros, para oferecer contato de
advogados dispostos a falar sobre as implicações civis, penais e
administrativas que os donos da boate e até da Prefeitura de Santa Maria
poderiam responder. Outro articulista oferecido perguntava: imagina na
Copa?
Até mesmo um gestor de empresa de radiocomunicação enviou artigo para
dizer que o uso desses equipamentos poderia ter mitigado a tragédia.
Tudo para concluir: “será que Deus é mesmo brasileiro?”
Há dúvidas, caro especialista de radiocomunicação. Há muitas dúvidas.
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