Por Urariano Mota
Recife (PE) - Busco no google informações sobre o
dia 8 de março. Entre 3.440.000 resultados recolho informações que não
se harmonizam. No primeiro endereço, na wikipédia, leio que “O Dia Internacional da Mulher,
celebrado em 8 de março, tem como origem as manifestações das mulheres
russas por melhores condições de vida e trabalho e contra a entrada da
Rússia czarista na Primeira Guerra Mundial. Essas manifestações marcaram
o início da Revolução de 1917”.
No segundo endereço, me dizem que “no Dia 8 de março de 1857,
operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana
de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram
a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na
carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de
trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres
chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o
mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de
trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres
foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente
130 tecelãs morreram carbonizadas”.
É provável que ambos resultados estejam certos, pois de comum acordo nos dizem que houve mulheres heróicas, de ação e personalidade coletiva
a marcar este dia. E no entanto, eu não precisava ir tão longe, no
espaço ou na história. Há tantas mulheres anônimas, sem registro nos
livros ou na Wikipédia, tantas heroínas em silêncio, que agem como se
fosse próprio do agir humano a doação. Aqui mesmo perto de casa, todos
os dias vejo uma senhora que deve ter 80 anos, a empurrar o seu filho
maduro em uma cadeira de rodas pela calçada da praia.
Ela segue curvada, silenciosa empurrando a cadeira de rodas entre
buracos e obstáculos. O filho velho acha tão natural o esforço da mãe,
que está sempre a sorrir olhando o oceano. Essa velhinha, que digo?,
essa magnífica senhora comove a tal ponto, que viro o rosto para o outro
lado, para o mar, como a me dizer eu não posso vê-la, não posso nem
devo, porque não conseguirei segurar a frase: “minha senhora, por favor,
de onde retira tanta força? Me dê o seu lugar”. E sei que se assim eu
fizesse, eu a incomodaria, porque é próprio dos heróis a discrição, o
anonimato.
Sei que muita gente há de estranhar o sentido que extraio para
heroína, herói. Para um quadro de amor do cotidiano, chamar uma velhinha
de heroína parece exagero e inadequado. Pois o dicionário Aulete nos
fala que herói é “homem notável por sua coragem, feitos incríveis, generosidade e altruísmo... Ver semideus”. Já o Houaiss delimita: “filho
da união de um deus ou uma deusa com um ser humano; semideus ..
indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (p.ex.,
infortúnios, sofrimentos) ou que arrisca a vida pelo dever ou em
benefício de outrem”.
Suportar uma sorte incomum... o que os dicionários registram está
mais para mitologia e extraordinários, para indivíduos raros, distantes
todos de todas as tardes na praia. Se mantenho o sangue-frio, digo que
herói nessas definições é um conceito miserável de conteúdo de vida.
Enquanto escrevo não me sai da cabeça o Noturno número 5 de Chopin para a
visão dessa senhora a carregar o filho velho na praia. Aqui [Veja o vídeo] a música toca para a sua penitência oculta e contente. Não lhe tirem o
fardo! ela não quer. Então eu sei que sem humanidade é um conceito de
herói que não fala da entrega pessoal, de todos os dias, em silêncio,
para que outros tenham a felicidade. Pois a sua, a desta senhora, é
carregar o seu doce e suave fardo. Somente Chopin lhe fala, porque toca
para que ela deslize entre pedras a carregar o maduro ex-feto, que não
ganha independência, porque depende das velhas mãos. E tudo sem clarins
ou trombetas.
Então me vem uma certa mulher do meu próximo romance, “O filho
renegado de Deus”. Nele há uma página em que a personagem Maria consola o
filho menino, que sofria ao ver a namorada sair com outros meninos:
“Ela lhe tocou nos cabelos e lhe deu um magnífico lanche de pão
com açúcar. Assim mesmo, um sanduíche de bolachão aberto com açúcar
espalhado dentro, logo ela, que o corrigia sempre quando ele reclamava
do café aguado, ‘o seu pai não é usineiro’. Sim, mas para matar a
dor a mãe era dona de usina, uma usineira próspera, e pouco lhe
importava que mais tarde o café fosse mais amargo.
- Tome, foi feitinho agora pra você”.
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