Amado Batista e a tortura
Por Urariano Mota
Recife (PE) - As declarações do cantor Amado Batista no programa “De frente com Gabi”, do SBT, merecem um pouco mais de reflexão. As notícias registram que assim falou o astro da canção brega:
“Eu acho que mereci a tortura. Fiz coisas erradas, os torturadores me corrigiram, assim como uma mãe que corrige um filho. Acho que eu estava errado por estar contra o governo e ter acobertado pessoas que queriam tomar o país à força. Fui torturado, mas mereci".
A reflexão sobre uma frase assim não deve ir pelo caminho do deboche, no gênero da última comédia stand-up, que tudo avacalha como se a vida fosse uma só avacalhação. Portanto, não diremos que há pessoas que gostam de espancar, e outras que adoram ser espancadas. Nem tampouco diremos que no cantor de triste nome Amado sobrevive a síndrome de Estocolmo, aquela em que a vítima passa a se identificar emocionalmente com a tortura que sofreu do criminoso, pois tem medo de maior violência. Esse mal cairia melhor em Geraldo Vandré. Não, o caso Amado Batista é outro. Tentarei refletir por um segundo caminho, em duas ou três coisas.
A primeira coisa que destaco na frase do cantor Amado é a mentira, sob duas faces. Na que mais aparece, a mentira objetiva, da realidade a que se refere, pois a ninguém deve ser dada a punição da tortura, e no caso de Amado com o agravo do adjetivo “merecida”.
Na outra face, mentira subjetiva mesmo, porque o não muito Amado desloca a dor sofrida para a felicidade da ética, aquela em que fazemos o justo, ainda que seja desconfortável. Por que esse deslocamento? A sua queda na consciência amoral deve ter ocorrido por motivos que ele não declara. Que bom acordo seguiu Amado Batista ao sair da tortura para o sucesso? É claro, todo conformista fala que as pessoas têm que sobreviver. Mas seria reveladora a apresentação da amada conta. Qual foi o seu valor?
A segunda coisa é a vitória parcial do conservadorismo, da repressão, que se encontra na raiz do espírito de escravo e da história da escravidão no Brasil. Amado Batista fala como um escravo que saiu da senzala e se vestiu de senhor. Ele fala como um escravo agraciado que acha justo o pelourinho porque alguma coisa de ruim o homem – ou parecido com homem - que sofre a tortura fez. Castigo merecido, ele declara. E nesse particular, Amado Batista é o retrato de um Brasil oprimido que sobrevive. Os pobres cujo espírito não se liberta da pobreza carregam por toda a vida o respeito à ordem e à autoridade. Se um miseráavel ou marginalizado recebe a morte ou o espancamento, ele fez por merecer, dizem. Em um Brasil que atravessa a recuperação dolorosa da memória, a frase de Amado Batista é um escárnio. Nesta semana, as ex-presas Dulce Pandolfi e Lúcia Murat expuseram com a verdade o que é a tortura: estupros, abjeção além do limite, exemplos nos próprios corpos de aulas para torturadores.
A terceira e última coisa a destacar no escárnio stand-up, do saudoso da humilhação Amado Batista, é a ignorância, o nível de apreensão da vida, da sociedade, que não se confunde com a ignorância de muitos homens e artistas iletrados. João do Vale, ou Vitalino dos bonecos de barro, marginalizados que foram do ensino nas escolas formais, jamais sorririam assim dos choques sofridos no pau de arara. Esse nível do cantor de injusta alcunha Amado se reflete melhor, creio, nas letras que a sua arte comete. Não precisam escutar, leiam um dos seus poemas cantados:
“Princesa, a deusa da minha poesia, ternura da minha alegria, nos meu sonhos quero te ver. Princesa, a musa dos meus pensamentos, enfrento a chuva e o mau tempo pra poder um pouco te ver”. [Gosto desta composição - nota do editor-geral]
E agora comparem, enfim, a justeza e boa ética da tortura, que pune os criminosos na frase de Amado Batista, com as palavras de Dulce Pandolfi: "Dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para uma aula de tortura. O professor, diante de seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática com algumas dicas teóricas". E nas de Lúcia Murat: "A tortura era prática da ditadura, e nós sabíamos disso pelo relato dos companheiros que tinham sido presos antes. Mas nenhuma descrição seria comparável ao que eu vim a enfrentar. Não porque tenha sido mais torturada do que os outros, mas porque o horror é indescritível". Tamanha era a dor e destruição que Lúcia tentou se matar duas vezes.
Tortura, a deusa da sua poesia, Amado Batista enfrentou a chuva e o mau tempo pra poder um pouco te ver.
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