foto Ricardo Stuckert, do Instituto Lula |
Lula deu nesta quinta-feira (14) uma entrevista para o livro que Emir
Sader e Pablo Gentili estão fazendo sobre os 10 anos de governo
democrático e popular no Brasil. O livro de artigos está sendo
organizado pela Clacso (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) e
deve sair em abril pela Boitempo Editorial e também poderá ser lido,
livremente, pela internet.
Trechos:
– Qual o balanço que o senhor faz dos anos de governo do PT e aliados?
– Esses anos, se não foram os melhores, fazem parte do melhor período
que este país viveu em muitos e muitos anos. Se formos analisar as
carências que ainda existem, as necessidades vitais de um povo na
maioria das vezes esquecido pelos governantes, vamos perceber que ainda
falta muito a fazer para garantir a esse povo a total conquista da
cidadania. Mas, se analisarmos o que foi feito, vamos perceber que
outros países não conseguiram, em trinta anos, fazer o que nos
conseguimos fazer em dez anos.
Quebramos tabus e conceitos preestabelecidos por alguns economistas,
por alguns sociólogos, por alguns historiadores. Algumas verdades foram
por água abaixo.
Primeiro, provamos que era plenamente possível crescer distribuindo
renda, que não era preciso esperar crescer para distribuir. Segundo,
provamos que era possível aumentar salário sem inflação. Nos últimos 10
anos, os trabalhadores organizados tiveram aumento real: o salário
mínimo aumentou quase 74% e a inflação esteve controlada. Terceiro,
durante essa década aumentamos o nosso comercio exterior e o nosso
mercado interno sem que isso resultasse em conflito.
Diziam antes que não era possível crescer concomitantemente mercado
externo e mercado interno. Esses foram alguns tabus que nós quebramos.
E, ao mesmo tempo, fizemos uma coisa que eu considero extremamente
importante: provamos que pouco dinheiro na mão de muitos é distribuição
de renda e que muito dinheiro na mão de poucos é concentração de renda.
– Quando começou o governo, o senhor devia ter uma ideia do
que ele seria. O que mudou daquela ideia inicial, o que se realizou e o
que não se realizou, e por quê?
– Tínhamos um programa e parecia que ele não estava andando. Eu
lembro que o ministro Luiz Furlan, cada vez que tinha audiência, dizia:
‘Já estamos no governo há tantos dias, faltam só tantos dias para acabar
e nós precisamos definir o que nós queremos que tenha acontecido no
final do mandato. Qual é a fotografia que nós queremos’. E eu falava:
‘Furlan, a fotografia está sendo tirada’.
Não é possível ficar com pressa de obter resultados. Nós temos que
provar, no final de um mandato, se nós fomos capazes de fazer aquilo que
nos propusemos a fazer. Se a gente for trabalhar em função das
manchetes dos jornais, a gente parece que faz tudo e termina não fazendo
nada.
Então é o seguinte: eu plantei um pé de jabuticaba. Se esse pé nascer
saudável, vai ter sempre alguém dizendo: ‘Mas, Lula, não está dando
jabuticaba, está demorando’. Se for cortar o pé e plantar outra coisa,
eu nunca vou ter jabuticaba. Então, eu tenho que acreditar que, se eu
adubar corretamente, aquele pé vai dar jabuticaba de qualidade. E eu
citava esses exemplos no governo…
Soja tem que esperar 120 dias, o feijão tem que esperar 90 dias. Não
adianta ficar repisando, ‘faz uma semana que eu plantei e não nasceu’.
Tem que ter paciência. Eu acho que eu fui o presidente que mais
pronunciei a palavra ‘paciência’, ‘paciência’… Senão você fica louco.
Tem gente na política que levanta de manhã, lê o jornal e quer dar
resposta ao jornal. E daí não faz outra coisa. Eu não fui eleito para
ficar o tempo todo dando resposta a jornal. Eu fui eleito para governar
um país. E isso me deu tranquilidade suficiente para ver que o programa
de governo ia ser cumprido.
– Quando o senhor perdeu a paciência?
– Obviamente que nós tivemos problemas no começo. Você acha que é
simples um metalúrgico sentar naquela cadeira na qual sentaram tantas
outras personalidades, que via pela televisão, que achava que era mais
importante do que eu… E o mesmo em relação a dormir no quarto em que
dormiu tanta gente importante ou que, pelo menos a voz da opinião
publica, são importantes. E eu ficava pensando: ‘Será que é verdade que
eu estou aqui?’.
No começo tinha muita ansiedade. “Será que nós vamos dar conta de
fazer isso? Será que vai ser possível?”, eu me perguntava. Eu acho que
nós fizemos. Com erro e com muita tensão, mas fizemos.
Tivemos tropeços, é lógico. Muitos tropeços. O ano de 2005 foi muito
complicado. Quando saiu a denúncia (do ‘mensalão’), foi uma situação
muito delicada. Se não tivéssemos cuidado, não iríamos discutir mais
nada do futuro, só aquilo que a imprensa queria que a gente discutisse.
Um dia, eu cheguei em casa e disse: ‘Marisa, a partir de hoje, se a
gente quiser governar este país, a gente não vai ver televisão, a gente
não vai ver revista, a gente não vai ler jornal’. Eu passei a ter meia
hora de conversa por dia com a assessoria de imprensa, para ver qual era
o noticiário, mas eu não aceitava levantar de manhã, ligar a televisão e
já ficar contaminado. Então eu acho que isso foi um dado muito
importante.
Eu tinha uma equipe e criamos uma sala de situação, da qual
participavam Dilma, Ciro (Gomes), Gilberto (Carvalho) e Márcio (Thomaz
Bastos). E era muito engraçado: eu chegava ao Palácio e eles estavam
todos nervosos. E eu estava tranquilo e falava: ‘Vocês estão vendo?
Vocês leem jornal… Vocês estão nervosos por quê?’.
Vocês nasceram radicais…
– O PT era muito rígido, e foi essa rigidez que lhe permitiu chegar
aonde chegou. Só que, quando um partido cresce muito, entra gente de
todas as espécies. Ou seja, quando você define que vai criar um partido
democrático e de massa, pode entrar no partido um cordeiro e pode entrar
uma onça, mas o partido chega ao poder.
Então, a nossa chegada ao poder foi vista por eles não como uma
alternância de poder benéfica à democracia, não como uma coisa normal:
houve uma disputa, ganhou quem ganhou, leva quem ganhou, governa quem
ganhou e fim de papo. Não é isso?
Eles não viram assim. Quer dizer, eu era um indesejado que cheguei
lá. Sabe aquele cara que é convidado para uma festa, e o anfitrião nem
tinha convidado direito. Fala assim: ‘Se você quiser, passa lá’. E você
passa e o cara fala: ‘Esse cara acreditou?’. Então, nós passamos na
festa, e o que é mais grave, acertamos.
E depois, tentaram usar o episódio do ‘mensalão’ para acabar com o PT
e, obviamente, acabar com o meu governo. Na época, tinha gente que
dizia: “O PT morreu, o PT acabou”. Passaram-se seis anos e quem acabou
foram eles. O DEM nem sei se existe mais. O PSDB está tentando
ressuscitar o jovem Fernando Henrique Cardoso porque não criou
lideranças, não promoveu lideranças. Isso deve aumentar a bronca que
eles têm da gente – que, aliás, não é recíproca.
– O senhor não tem raiva da oposição?
– Eu não tenho raiva deles e não guardo mágoas. O que eu guardo é o
seguinte: eles nunca ganharam tanto dinheiro na vida como ganharam no
meu governo.
Nem as emissoras de televisão, que estavam quase todas quebradas; os
jornais, quase todos quebrados quando assumi o governo. As empresas e os
bancos também nunca ganharam tanto, mas os trabalhadores também
ganharam.
Agora, obviamente que eu tenho clareza que o trabalhador só pode
ganhar se a empresa for bem. Eu não conheço, na história da humanidade,
um momento em que a empresa vai mal e que os trabalhadores conseguem
conquistar alguma coisa a não ser o desemprego.
– O Brasil mudou nesses dez anos. E o senhor, também mudou?
– Uma das coisas boas da velhice é você tirar proveito do que a vida
te ensina, em vez de ficar lamentando que está velho. A vida me ensinou
muito. Criar um partido nas condições que nos criamos foi muito difícil.
Agora que o partido é grande, tudo fica fácil, mas eu viajava esse país
para fazer assembleia com três pessoas, com quatro pessoas, com cinco
pessoas.
Saia daqui de São Paulo para o Acre pra fazer reunião com dez
pessoas, para convencer o Chico Mendes a entrar no PT, para convencer o
João Maia – aquele que recebeu dinheiro para votar na eleição do
Fernando Henrique Cardoso e era advogado da Contag – para entrar no PT.
Era muito difícil fazer caravana, viajar ao Nordeste, pegar ônibus,
ficar uma semana andando, fazendo comício ao meio-dia, com um sol
desgraçado, explicando o que era o PT para que as pessoas quisessem se
filiar.
– Por quê?
– A eleição está ficando uma coisa muito complicada pro Brasil. No
mundo inteiro. No Brasil, se o PT não reagir a isso, poucos partidos
estarão dispostos a reagir. Então o PT precisa reagir e tentar colocar
em discussão a reforma política. Eu tentei, quando presidente, falar de
uma Constituinte exclusiva, que é o caminho: eleger pessoas que só vão
fazer a reforma política, que vão lá (para o Congresso), mudam o jogo e
depois vão embora. E daí se convocam eleições para o Congresso. O que
não dá é pra continuar assim.
Às vezes tenho a impressão que partido político é um negócio, quando,
na verdade, deveria ser um item extremamente importante para a
sociedade. A sociedade tem que acreditar no partido, tem que participar
dos partidos.
– O PT não mudou necessariamente para melhor?
– O PT mudou porque aprendeu a convivência democrática da
diversidade; mas, em muitos momentos, o PT cometeu os mesmos desvios que
criticava como coisas totalmente equivocadas nos outros partidos
políticos. E esse é o jogo eleitoral que está colocado: se o político
não tiver dinheiro, não pode ser candidato, não tem como se eleger. Se
não tiver dinheiro para pagar a televisão, ele não faz uma campanha.
Enquanto você é pequeno, ninguém questiona isso. Você começa a ser
questionado quando vira alternativa de poder. Então, o PT precisa saber
disso.
O PT, quanto mais forte ele for, mais sério ele tem que ser. Eu não
quero ter nenhum preconceito contra ninguém, mas eu acho que o PT
precisa voltar a acreditar em valores que a gente acreditava e que foram
banalizados por conta da disputa eleitoral. É o tipo de legado que a
gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. E provar que é
possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo político,
pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas não
precisa estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT
precisa voltar urgentemente a ter isso como uma tarefa dele e como
exercício pratico da democracia. Não tem de voltar a ser sectário como
era no começo.
Eu lembro que companheiros meus perderam seu emprego numa
metalúrgica, montaram um bar, mas quiseram entrar no sindicato e não
puderam. “Você não pode entrar porque é patrão”, diziam. O coitado do
cara tinha só um bar! A coitada da minha sogra, a mãe do marido da
Marisa, a mãe do primeiro marido da Marisa (eu sou o único cara que tive
três sogras na vida e uma que não era minha sogra; era sogra da minha
mulher, por conta do ex-marido dela, que eu adotei como sogra), a
coitada tinha um fusquinha 1966 que era herança do marido. E ela ganhava
acho que R$ 600 – naquele tempo era como se fosse um salário mínimo de
hoje – de aposentadoria, mas gostava de andar bem-vestida. Ela chegava a
reunião do PT e o pessoal falava: ‘Já veio a burguesa do Lula’.
Tinha um candidato a vereador que queria dinheiro para a campanha e
eu falei: “Olha, eu não vou pedir dinheiro para a campanha. Se você
quiser, eu te apresento algumas pessoas”. Dai ele disse: “Não, mas eu
não quero conversar com empresário”.
Falei: “Então você quer que um favelado dê dinheiro para a tua
campanha?”. Eu já fiz campanha de cofrinho. Eu já fiz campanha de
macacão em palanque. Na campanha de 1982, a gente ia ao palanque, antes
que eu falasse, fazia propaganda das camisas, dos botons, de tudo que a
gente vendia. E a gente vendia na hora e arrecadava o dinheiro para
pagar as despesas daquele comício”.
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