Por Maria Luiza Quaresma Tonelli*
Às vésperas de completar 52 anos do golpe civil-militar que levou o
país a uma ditadura que durou 21 anos, o Brasil assiste a mais uma
tentativa de golpe, desta vez não pela via dos quartéis, mas pelo
parlamento. Isso mesmo: um golpe parlamentar que pretende utilizar o
impeachment de forma ilegal e ilegítima para cassar o mandato popular da
presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos.
Manipulam mentes e corações os que defendem o impeachment da
presidenta Dilma Rousseff a qualquer custo, simplesmente pelo fato de
que o impeachment é um instrumento previsto na Constituição Federal para
impedir o/a chefe do poder executivo de continuar governando.
Impeachment, palavra da língua inglesa (que significa
impedimento ou impugnação de mandato) é o termo utilizado para o
processo constitucional a fim de que se obtenha a cassação do mandato de
um presidente pelo Congresso Nacional, de governadores pelas
Assembleias Legislativas e de prefeitos pelas Câmaras Municipais. No
Brasil, a Constituição Federal de 1988 elenca de forma taxativa os motivos pelos
quais o presidente da república estará sujeito ao impedimento de seu
mandato, na sessão onde trata “Da responsabilidade do presidente da
República”. É exatamente no artigo 85 que onde se define a possibilidade
de cassação do chefe maior do poder executivo: crimes de responsabilidade.
Vejamos:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da
República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente,
contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do
Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da
Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
Portanto, o impeachment é um processo jurídico-político. Jurídico
porque a cassação de um mandato presidencial está sujeita ao que diz
explicitamente a Constituição (crimes de responsabilidade definidos em
lei especial) político porque o julgamento do processo
de impeachment se dá no Congresso Nacional. É desonestidade intelectual
ou ignorância afirmar que o impeachment é um julgamento eminentemente
político, como se a sua base legal fosse secundária. Como se fosse um
julgamento mais político do que jurídico simplesmente porque “as
condições políticas”, como “a voz das ruas” ou a “vontade da maioria no
parlamento” fossem condições necessárias e suficientes para cassar não
apenas o mandato presidencial, mas sobretudo a voz das urnas. A
democracia tem como fundamento a soberania popular. Sem crime de
responsabilidade devidamente comprovado, cassar o mandato de uma
presidenta eleita pela maioria é cassar a soberania popular, é um
processo de impedimento da democracia. É, sobretudo, uma violação ao
princípio da legalidade, em que se baseia o Estado Democrático de
Direito. É uma violação à Constituição Federal.
Dilma Rousseff não cometeu nenhum dos crimes de responsabilidade que
atentem contra a Constituição Federal, segundo o que diz o artigo 85
acima mencionado. Por isso estamos certos quando dizemos que impeachment
sem crime é golpe. É o artifício utilizado pelos derrotados nas urnas
para, com aparência de legalidade e ares de legitimidade, ocupar o poder
no tapetão.
Democracia é o regime dos direitos e da luta por direitos, por isso é
o regime no qual os conflitos estão presentes e são legítimos, dada a
pluralidade existente na sociedade democrática. Democracia não se
confunde com o Estado de Direito, mas é ele que deve garantir a ordem
democrática. Vale salientar, contudo, que não é o Estado de Direito que
faz a Democracia. É a Democracia que faz o Estado de Direito ser
democrático. Não podem os agentes políticos nem os profissionais do
Direito (como faz a OAB), que por dever de ofício conhecem as leis,
defenderem seus interesses e ideologias, passando por cima da
Constituição, a carta política de uma nação. Defender o mandato da
presidenta Dilma Rousseff contra o impeachment sem crime de
responsabilidade não significa defender seu governo, mas a legalidade e
a Democracia.
Não vamos permitir, após 52 anos, mais um golpe contra a Democracia.
Um golpe travestido de uma pretensa legalidade. Resistiremos até o fim
contra os que devem ser chamados pelo nome adequado: golpistas.
Muitas vidas foram ceifadas na ditadura, apoiada pelos mesmos que
hoje defendem o impeachment da presidenta Dilma, ela mesma presa e
torturada durante o período mais trágico de nossa história. Muitas
pessoas dedicam suas vidas a lutar por direitos conquistados nos
governos Lula e Dilma. São cidadãos comuns que têm apreço pela Política
em seu sentido autêntico, são milhares de jovens politizados, a
esperança de futuro deste país, são centenas de movimentos sociais e
populares que resistirão ao golpe que se avizinha. Sejam os golpistas
derrotados ou vencedores, passarão para a história pelo que são:
traidores da pátria, traidores da democracia, traidores do povo.
Simplesmente porque impeachment sem crime de responsabilidade é golpe
sim.
*Advogada, mestre e doutora em Filosofia pela USP
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