sexta-feira, 30 de setembro de 2011

LULA no Sciences Po: Íntegra dos Discursos de Richard Descoing e Jean-Claude Casanova


O Instituto de Estudos Políticos de Paris – Sciences Po – acaba de divulgar, na íntegra, o vídeo da cerimônia de outorga do título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O evento ocorreu na capital francesa na última terça-feira (27).

Confira, abaixo a tradução feita pelo Instituto Lula dos discursos de Richard Descoing e de Jean-Claude Casanova, que falaram antes de Lula:



Richard Descoing

Diretor do Instituto de Estudos Políticos de Paris

Vossa Excelência, bem-vindo à Sciences Po. É um prazer estar aqui com você.

Senhor presidente da República, senhor presidente da Fundação Nacional de Ciências Políticas, senhor primeiro-ministro, senhores ministros, senhoras e senhores embaixadores, professores da Sciences Po, senhoras e senhores alunos da Sciences Po,

Meu português, e particularmente meu português brasileiro, não é bom. Senhor presidente, me permita não continuar meu discurso em português. Creia que eu fico chateado, neste evento em que tantos jovens alunos hoje estão aqui, notadamente aqueles que se locomoveram do nosso campus em Poitiers, especialmente pelo senhor. Eles ensinam a “paixão”, o português, o espanhol, o francês, mesmo o inglês e algumas outras línguas do nosso mundo.

O senhor compreendeu, senhor presidente, pela recepção que lhe foi reservada no Grande Hall histórico de Sciences Po, além do anfiteatro que leva o nome do fundador da Sciences Po, o quanto nós somos entusiastas e imensamente honrados que você tenha aceitado receber do corpo docente da Sciences Po o título de Doutor Honoris Causa que lhe entregará nosso presidente, senhor Casanova, em breve, assim que ele pronunciar seu “Elogio”.

Acompanhem-me sobre algumas palavras a respeito do nome. Quero lhes dizer – eu espero, em nome da grande parte dos que estão aqui esta noite – como nos sentimos de compartilhar com os senhores e com o país ao qual pertencem, seus valores que não abrem mão de defender. Começo por um valor que é caro à Sciences Po, que é caro ao seu país e que eu devo crer que é caro igualmente a muitos países no mundo que compreendem este que vos recebe esta noite. Eu lhes falo de mestiçagem.

Cremos profundamente na Sciences Po no extraordinário enriquecimento que representa a mestiçagem de culturas, de educação, de nacionalidades, de paixões – das quais falei agora há pouco – mestiçagem e confrontação de ideias. Aqui, em uma instituição de ensino superior e de pesquisa, nós temos opiniões definitivas sobre tudo e todo assunto. Se não formos inspirados a todo momento pelos trabalhos científicos de outros membros, de outros corpos docentes, por todo o mundo, nosso pensamento será mais pobre. É a mestiçagem deste pensamento que nos enriquece, mas também a confrontação, nós estamos em um país, em uma universidade que crê no debate.

A Sciences Po foi criada por humanistas que estiveram confrontados a outros pensamentos, de homens e mulheres – na época mais por homens, é preciso dizer – que eram convencidos que todos os valores não são comparáveis, mas que o que faz a força de uma democracia liberal é a confrontação, é a disputa, é o debate, que não termina necessariamente em consenso, mas que ao menos dá a cada uma e a cada um a possibilidade de se exprimir e de defender as ideias que ela ou ele decidem se engajar, seja em empresas, na administração pública, nas instituições internacionais, organizações não-governamentais e, claro senhor presidente, na política.

Eu percebo aqui e no seu país a crítica aos políticos. Eu gostaria de dizer muito solenemente de minha imensa admiração pelos que se lançam sem grande esperança de fortuna, algumas vezes na expectativa de sucesso, na defesa de suas ideias, de seus valores, para fazer ganhar um espaço na história de sua sociedade, fazer ganhar sua convicção e receber de seu povo a honra de ter sucesso no governo.

A mestiçagem, das ideias, da cultura, de nação, assim como estamos fazendo na União Europeia, e ao mesmo tempo a confrontação intelectual, a disputa, e a aceitação de que certos valores devem se sobressair sobre outros. Esse é um primeiro ponto que pode explicar a decisão unânime de entregar ao senhor o título de Doutorado Honoris Causa.

Mas não é a única. A segunda razão – não irei além de três – é a luta que fez contra as desigualdades. Claro que quando lutamos contra as desigualdades, não temos sucesso totalmente, nem definitivamente. Aí, alguns se aproveitam pra dizer que tudo é impossível, nada é desejável, necessário, nem possível de começar. Nós cremos, na Sciences Po, que a luta contra as desigualdades, mesmo aquelas difíceis e perenes, é um valor que motiva nós todos da comunidade acadêmica. Eu creio que o senhor representa aqueles que pensam, não apenas no seu país, que não podemos nos satisfazer às desigualdades persistentes e acentuadas. E sabemos como é efetivamente difícil dar maior igualdade de oportunidade.

O terceiro valor é formidavelmente representado em frente a vocês esta noite. É a curiosidade intelectual infinita e a vontade infinita de conhecer o mundo em que estamos. Você lutou para que o Brasil acessasse um status internacional – nossos professores costumam dizer – como jamais sem dúvida alcançou, claro que com ajuda do seu predecessor e em seguida de sua sucessora, para que o Brasil tenha um impacto considerável nas questões do mundo.

Hoje não é mais possível tratar de um assunto sem que os brasileiros sejam consultados. Melhor ainda, você conquistou que as relações se multiplicassem entre os países do sul, de uma maneira que a Europa passa a compreender que a abertura, por exemplo, de suas fronteiras agrícolas não será danosa aos camponeses europeus. Não pensamos mais o mundo unicamente na oposição entre o mundo de industrialização antiga (espero que não seja de prosperidade antiga, espero estar errado em dizer isto) e o mundo emergente, que deve muito à Europa e à Àfrica. Por isso nós abrimos, depois de dezenas de anos, um campus fora de Paris com estudantes que vêm do mundo todo. Cremos, neste novo ano escolar, em um novo contato entre estudantes europeus e africanos, e optamos que os estudantes desta nova formação possam representar diversos estados africanos, e que possam vir da Europa e de outros países.

Gostaríamos profundamente e concretamente, através dos jovens que estão aqui hoje, de constituir esse mundo de cidadania e de regulação mundial, que sabemos ser complicada, conflituosa, mas que pode avançar mais rápido do que pensamos na Europa graças à imensa energia de jovens de várias gerações, e aos jovens que aqui estão hoje, para lhe dizer da nossa admiração, nosso respeito e a imensa felicidade de lhe incluir ao nosso corpo docente. Eu agradeço ao senhor.



Jean-Claude Casanova

Presidente da Fundação Nacional de Ciências Políticas

Senhor presidente, senhor secretário-geral do ministério das Relações Exteriores, senhores embaixadores, caro diretor e amigo, caros colegas, senhoras e senhores,

Lá se vai exatamente um século desde que um grande escritor francês – muito conhecido na época, menos conhecido hoje em dia – que tem o belo nome de Anatole France, se rendeu ao Brasil e foi recebido pela academia de seu país.

Evocou sentimentos republicanos que defendia, e estimulava os brasileiros. E a Republica brasileira foi proclamada no mesmo quarto de século que a República francesa. Ele lembrou Gambetta, Litré, e sobretudo Jules Ferry como discípulos de Auguste Conte, os positivistas. Ele definiu o positivismo pela imparcialidade, pela pesquisa da lógica na preparação e de conclusões unicamente fundadas na experiência, e reconhecia que esta doutrina, esta religião, nasceu na França e foi passada como se passam todas as outras.

No Rio de Janeiro, ele constatou que no Brasil o positivismo recebeu as adesões mais sólidas, e escreveram na sua bandeira “Ordem e Progresso”, máxima que deve ser depurada para deduzir sua humanidade, o amor por princípios. Ordem como base, progresso como objetivo, fórmula que deve ser agregada a: saber para prever a fim de poder, induzir para deduzir a fim de construir, o homem de mais a mais não precisará se subordinar à humanidade.

Fórmula que parece ainda ditar as ações e a alma do seu país, o positivismo prefere a indústria à guerra, a solidariedade à luta, respeita a independência dos sábios, reserva apenas a polidez às autoridades para mostrar admiração, eleva os proletários ao mesmo status de engenheiros, a força dos homens à doce diplomacia das mulheres. Nos ideais de Comte encontramos a esperança e a generosidade.

Como francês e europeu, não posso me esquecer do telegrama enviado pelos positivistas do Brasil em 1914 pedindo que franceses e outros povos – que Comte chamava de Repúblicas Ocidentais –não entrassem em guerra, além de alertar sobre o risco da presença catastrófica do retardo da propaganda positivista em Paris. Em setembro de 1914, os mesmos brasileiros alertam sobre a catástrofe que estava por vir na Europa, especialmente nestas repúblicas ocidentais. O telegrama resta sem resposta ao seu país, e me dá um sentimento de deferência. Deferência dos que devem aos filhos aqueles que erraram, ao passo daqueles que vislumbraram a justiça e deram conselhos desinteressados que não foram seguidos.

Deste Brasil tão próximo do ideal e tão longe de nós, o senhor é, presidente, uma das melhores encarnações. Assim que esta casa foi criada, os que foram os inspiradores pensaram que não podem dissociar a política do exercício do poder, como experiência, e a reflexão sobre a política. Assim homens políticos e teóricos estudaram nesta escola, desde o seu início. É natural que o saudemos como Doutor da Política , um homem que provou sua ciência por sua ação, que testemunhou por seu próprio mérito, e que a ensina pela história de seu sucesso.

Permita-me retornar a 1945, ano que o senhor nasceu, na sequência da guerra que o Brasil lutou do lado da democracia. A desconfiança inglesa e o impedimento soviético coibiram a proposta de incluir o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. O senhor nasceu em uma família de oito crianças educadas por sua mãe. O mesmo Auguste Comte diria que renunciássemos à palavra “pátria”, e que substituíssemos pela palavra “mátria”. Trabalhador metalúrgico, tornou-se líder sindical, fundou o PT, confrontando com nobreza e coragem por 22 anos as lutas eleitorais, foi eleito em 2002 à presidência da República Federativa do Brasil. Auguste Comte não amava os doutores e os diplomados, e no triunfo dos proletários ele teria visto um evento digno de comemoração. O senhor é o 36o presidente do Brasil, mas o primeiro vindo do povo sem graduação ou título universitário. Sua eleição se constitui uma inovação inesperada, a ascensão da igualdade em uma sociedade desigual.

É difícil ser eleito, é mais difícil ser reeleito, isto que o senhor fez em 2006 com mais de 60% dos votos. É ainda mais difícil de merecê-lo. No curso de seus dois mandatos, 35 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema e a classe média se tornou majoritária no seu país. Quinze milhões de empregos foram criados, e o poder de compra das famílias cresceu muito. No fim do seu segundo mandato, você tinha mais de 80% de opiniões favoráveis, e cedeu seu lugar à candidata que havia apoiado, a senhora Dilma Roussef. Não conhecemos na Europa trajetória politica tão luminosa e virtuosa.

O seu trabalho justifica o seu renome, e seu renome justifica nossa vontade de lhe entregar o Doutor Honoris Causa. Do seu trabalho, destaco as ideias de economia mais próspera, de uma sociedade mais justa e mais educada, e de um Brasil mais presente no mundo. O periódico que é conhecido por não ser complacente, a revista inglesa The Economist, disse sobre o senhor “Finally, Brazil takes off” (Finalmente, Brasil decola). É uma metáfora conhecida dos economistas, e quer dizer que o crescimento médio no seu mandato foi em torno de 4% por ano, a dívida publica foi reduzida em 20% e corresponde hoje a 43% do PIB, e as reservas foram multiplicadas por sete. Espero que você aproveite sua viagem à Europa para dar alguns conselhos aos nossos governantes.

Uma sociedade mais justa e melhor educada, com menores desigualdades, favorecendo todas as formas de acordos salariais. Desenvolveu, pelos programas sociais, uma larga distribuição que fez com que a classe média represente hoje 53% da população do Brasil. Você quis que as universidades fossem mais numerosas e mais dotadas. Em 2003, havia 9% dos brasileiros estudando no ensino superior. Na sua saída, eram 14%. Você criou 14 novas universidades federais e dobrou o numero de estudantes que estudavam através de bolsas. Por fim, você deliberou politicas de ações afirmativas, o que chamamos aqui de “discriminação positiva”.

O lugar do Brasil no mundo foi afirmado e o Brasil se transformou em um dos atores principais da cena internacional, a principal potência da América Latina e uma das principais potências do planeta. Você favoreceu a integração econômica do Sul face aos Estados Unidos, com um papel considerável nas negociações comerciais, ambientais e financeiras no mundo. Vocês não se tornaram, apesar de seus esforços, membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU – alguém que pode dizer “não”. Auguste Comte preferia as mulheres e os proletários aos homens e diplomados porque pensava ter mais valor dizer “sim” ao progresso e à paz.

Por todas estas razões, além de outras razões conhecidas, nosso Conselho decidiu conceder ao senhor o título de Doutor Honoris Causa da nossa Sciences Po. Estou encarregado de dizer ao senhor da nossa deferente admiração e peço que aceite este título, certamente inútil à sua gloria, mas que nos honrará e que nos permitirá dizer que, graças a homens como o senhor, a política pode ser respeitada e ensinada.

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