Thiago Leandro Vieira Cavalcante *
Adital - Sei que estou entrando em um campo minado ao escrever este artigo, afinal diz o ditado "religião, política e futebol não se discutem" e venho aqui querer discutir dois desses temas logo de uma só vez. A intenção é refletir a partir da situação em que um desses temas a "religião" está interferindo diretamente em outro, a "política", ou melhor, no processo eleitoral presidencial brasileiro deste ano. O primeiro espanto com que me deparo diz respeito ao fato de a questão religiosa, mais precisamente um único aspecto dela, estar sendo apontado e instrumentalizado por muitos como fiel da balança no atual processo eleitoral. Meu espanto se dá justamente porque vivemos num Estado laico, no qual a liberdade religiosa, e a livre expressão do pensamento são garantidas pela Constituição Federal. Frequentemente esse nosso país é citado como exemplo de tolerância religiosa e até de convivência harmoniosa entre religiões de diversas matrizes. Mas o que está acontecendo então? Por que a polêmica em torno do aborto ganhou proporções tão maiores do que qualquer programa ou proposta dos dois partidos políticos que permanecem na disputa? Juros, fome, previdência, reforma política, educação, saúde..., que nada! O negócio é discutir o aborto, quem for a favor é amigo do "cramulhão", do "inimigo", do "coisa ruim", do "filho das trevas", quem for contra, tem a aura revestida de luz e o paraíso como destino. Será que a tolerância religiosa, da qual tantas vezes nos orgulhamos, não passa de mais um mito brasileiro, como aquele decaído da igualdade racial? Obviamente não tenho elementos suficientes para responder essas questões com a precisão necessária de uma pesquisa sociológica ou antropológica que pretenda desvendar essas interrogações acerca da sociedade brasileira. Então, o que escrevo são minhas opiniões, opiniões de um eleitor, sem filiação partidária, mas com clara preferência pela proposta da candidata à presidência Dilma Rousseff, opiniões de um eleitor cristão que rechaça qualquer fundamentalismo religioso.
Em primeiro lugar, penso que a tolerância religiosa brasileira, de maneira geral, demonstra existir apenas em sentido stricto, ou seja, os adeptos de várias religiões cristãs e não cristãs se toleram, mas nem sempre são capazes de atitudes que vão para além disso. Há um respeito aparente que mascara uma realidade muito ampla de preconceitos e julgamentos. Cada um costuma acreditar que é melhor do que seus semelhantes e nos esquecemos da mensagem evangélica "Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra" (Jo, 8: 7). Obviamente que há divergências, se não houvesse, não teríamos tamanha diversidade de denominações religiosas, o problema é que essas divergências muitas vezes são evocadas para desqualificar, diminuir e até mesmo tirar a dignidade da pessoa humana. Pensando a partir do cristianismo, essas atitudes são contrárias à mensagem evangélica, que é de acolhimento, de compreensão, de tolerância e amor ao próximo. Muitos se esquecem do Cristo que acolhe, e pregam o Deus opressor, ou mesmo o Deus que distribui dons, entendidos como carros, casas, fortunas, mas o Deus que acolhe o pobre, que exalta o oprimido, que defende a vida plena... esse não..., esse não paga o dizimo.
Diante deste contexto, num momento crucial para o Brasil, causa espanto como alguns têm utilizado a questão do abordo contra a candidata Dilma, afirmando de forma mentirosa e indecente que ela é a favor da liberação do aborto. Não vou me aprofundar sobre esse tema, pois não é sobre isso que quero falar, mas pensando bem, porque não lembrar que foi o ex-ministro da saúde de Fernando Henrique Cardoso, que se auto-intitula, "o melhor ministro da saúde do Brasil" que em 1998 normatizou a prática do aborto, em vítimas de violência sexual, nos hospitais do SUS. Isso mesmo, a prática do aborto! Ai você pode me dizer, mas só para quem foi violentada, ah meu caro, e o que o filho da mulher violentada tem haver com o fato de ela ter sido vítima de violência? Não é aborto? Não que eu seja contrário à assistência prestada pelo SUS a essas mulheres, em muitos casos ela impede a morte das vítimas que poderiam buscar métodos muito perigosos para alcançarem seu intento. Chamo atenção para a repentina mudança no discurso de Serra, derrepente ele transferiu o assunto do campo das políticas públicas para o das convicções religiosas, estranha essa mudança. Também foi ele, meus caros irmãos católicos, quem liberou a pílula do dia seguinte, essa mesma que a Santa Madre Igreja diz ser abortiva. Que coisa! Como o ex-ministro Serra ficou conservador da noite para o dia. O fato é que, apoiados por uma parcela das empresas midiáticas, algumas pessoas mal intencionadas estão tornando um assunto periférico em tema central do debate. É sabido que a legislação sobre o aborto só pode ser modificada por força de lei. O presidente, seja quem for, não tem poder para isso, legislar é uma atribuição dos deputados e senadores. De fato desejam esconder a enorme diferença que existe entre os dois projetos políticos que estão disputando o segundo turno. A elite brasileira não se conforma em deixar que um governo popular dê continuidade às mudanças iniciadas pelo presidente Lula.
Considero que as verdadeiras igrejas cristãs são aquelas que defendem a vida, mas a vida plena, não somente a dos embriões, que são sim importantes, mas não as únicas a serem defendidas. Minha opinião é semelhante à de Dom Dimas, secretário geral da CNBB, que embora contrário ao aborto, disse que a vida humana não se restringe ao estágio embrionário. É preciso defender a vida de quem passava fome e hoje tem pão em sua mesa, é preciso defender a vida de quem não tinha perspectiva de vida e hoje frequenta os bancos das universidades públicas e privadas do Brasil, lado a lado, com os filhos dos mais ricos, é preciso defender a vida de quem dormia às sete da noite porque não tinha luz em sua casa, é preciso defender a vida de quem era apenas um ser desprovido de personalidade, humilhado e invisível, mas que hoje se tornou uma pessoa humana com nome, endereço, com comida na mesa, universidade, carro, conforto, ou seja, dignidade!
Prefiro a igreja que dá e ajuda a dar de comer a quem tem fome, que dá e ajuda a dar de beber a quem tem sede, a igreja que acolhe o estrangeiro oprimido, que veste o nu, que visita e acolhe o doente e o marginal, prefiro a igreja que, como Cristo, prefere os pobres, a igreja que liberta, não a que aprisiona. Afinal é essa a igreja que pode receber a vida eterna (Mt, 25: 31-46).
É evidente que não sou ingênuo a ponto de achar que, durante o governo do presidente Lula, o Brasil se tornou o paraíso terreno, há problemas e muitos, mas não posso negar, ou melhor, não tenho como negar, pois não sou cego, é impossível não perceber últimos anos tivemos um avanço social como nunca antes se viu no Brasil. Espantoso também é ver como isso incômoda nossas elites. Incômoda às elites ver alguém, como eu, que começou a trabalhar muito cedo, aos treze anos de idade, porque seu pai foi um dos milhares de trabalhadores que passaram quase todo o governo de FHC desempregados, chegar hoje aos bancos de um curso de doutorado. Incômoda mais ainda quando sabem que minha irmã, mais jovem, não precisou enfrentar todos os obstáculos que eu, pois grande parte de sua vida escolar se deu durante os anos do governo Lula e hoje ela é uma fisioterapeuta formada com bolsa do ProUni.
Porque acredito na igreja cristã que acima descrevi, me indigna ver alguns lideres religiosos católicos e protestantes levantando uma verdadeira cruzada contra o PT, do alto de sua autoridade, um padre da Comunidade Canção Nova, exaltou seus fiéis a não votar no PT. Opa! Não vou poder citar literalmente as palavras do Padre José Augusto porque a Canção Nova reivindicou os direitos autorais do vídeo que estava no You Tube, será que pegou mal? Tiraram a mensagem "profética" do acesso público. É verdade e até louvável que o Monsenhor Jonas Abib, fundador e líder da Canção Nova, lançou uma nota pedindo desculpas por "qualquer excesso", mas será que a repercussão e o impacto desta nota irá ser proporcional ao estrago das afirmações feitas por José Augusto em sua homília?
Mais indignante ainda foi a atitude de alguns bispos de dioceses paulistas, dentre eles o de Guarulhos, o nobre prelado Dom Luiz Gonzaga, munido de seu múnus apostólico, no último dia 3 de outubro, quase alado com seu título de nobreza, reforçando a aliança da ala ultraconservadora da Igreja com as elites nacionais, distribuiu panfletos e fez proselitismo contra o voto em Dilma e nos candidatos do PT. Além de uma atitude vergonhosa, eles praticaram crime eleitoral e, a meu ver, devem ser investigados e punidos. Mas isso ainda é pouco, segundo o bispo de Jales, Dom Demétrio Valentini, os autores do panfleto articularam o texto de modo a induzir os fiéis a acreditarem que aquela era a posição oficial da CNBB. Em nota oficial, a CNBB desmentiu o panfleto afirmando que "Falam em nome da CNBB somente a Assembleia Geral, o Conselho Permanente e a Presidência". Em matéria publicada, no último dia 5 de outubro, por Carta Maior Dom Demétrio lamenta que "A nossa instituição foi instrumentalizada politicamente com a conivência de alguns bispos". É isso ai, em nome do calunioso uso do não matarás, vossas reverendíssimas esqueceram-se do não levantarás falso testemunho. No dia seis de outubro, Dom Demétrio afirmou ao Brasil de Fato que estas lideranças "Votam, sem constrangimento, no sistema que produz a morte, e se declaram em favor da vida", faço minhas as palavras do bispo. Estamos diante da hipocrisia cristã que como no golpe de 1964, volta a se manifestar. Na verdade defendem o projeto político elitista e não têm o caráter de assumir essa posição, por isso colocam todo seu discurso sobre um tema tão sensível como o aborto. Se quiserem apoiar as elites, que o façam, viva a democracia! Mas que façam isso sem tentativas de manipulação da fé e da consciência das pessoas para tentar convencê-las a lhes seguir.
Até aqui só falei dos católicos, teria evidentemente outros exemplos, mas esse texto já esta ficando longo demais. É justo e bom lembrar, que os noticiários, e os e-mails que circulam pela web demonstram que muitos pastores e lideranças de várias denominações protestantes tem tido atitude análoga a essa dos católicos. Minhas críticas se estendem a eles. Não estou aqui acusando uma igreja em particular, estou me posicionando contrariamente a todos que recebendo o ministério pastoral, que os devia converter em servidores, o utilizam para instrumentalizar a autoridade da qual são investidos para tentar manipular as consciências de seus fiéis e para servir às elites.
É evidente que temos no interior das igrejas várias manifestações em sentido contrário à posição que venho criticando. É bom lembrar, por exemplo, que o deputado federal eleito Gabriel Chalita, vitorioso no pleito paulista pelo PSB, com a segunda maior votação do estado, declarou apoio à Dilma. O deputado, que é ligado à Igreja Católica Romana, particularmente ao movimento da Renovação Carismática Católica, um dos mais conservadores dentro desta igreja, também é apresentador de um programa de TV exibido no canal católico Canção Nova. O ex-tucano e ex-secretário de educação do governo Alckmin, cujas realizações no âmbito educacional não vou aqui discutir, em entrevista concedida à Folha disse que irá se empenhar pessoalmente em ajudar o PT a avançar entre os religiosos. O candidato afirma que não considera Serra um político admirável e que a Igreja tem sim que cumprir seu papel estimulando o debate, mas não influenciando nos votos dos fiéis. Disse ainda que os boatos são tentativas de desconstruir pessoas e que Dilma nunca se posicionou a favor do aborto, ela apenas abordou o assunto como um tema ligado à saúde pública. A cruzada difamatória empreendida contra Dilma, segundo Chalita, é semelhante aos boatos levantados contra Lula em 2002, em tal eleição diziam que o presidente operário iria trocar as cores da bandeira e fechar as igrejas. Outros líderes religiosos e teólogos cristãos apóiam Dilma no segundo turno e se posicionam contrariamente à campanha difamatória em questão, Leonardo Boff é um deles. Há também muitos apoios declarados no meio protestante, no último dia 23 de julho a Folha noticiou o apoio de quinze igrejas evangélicas à candidatura de Dilma.
Também é louvável o pronunciamento da pastora Odja Barros Santos, presidente da Aliança de Batistas do Brasil, publicado por Adital no dia 8 de outubro. Em coerência com o compromisso histórico dos batistas pela liberdade de consciência em matéria de religião, política e cidadania, por meio de sua presidente, a entidade posiciona-se claramente contra as tentativas de demonização do PT e de Dilma. A entidade considera estranho que as mesmas lideranças religiosas que afirmam que o governo Dilma será um governo de iniquidades, não denunciam a fome, o acúmulo de riquezas e terras no Brasil, além de tantas outras iniquidades cometidas durante o governo de FHC. A entidade reconhece que o governo Lula promoveu significativas mudanças no Brasil, como, por exemplo, a diminuição da taxa de desemprego, melhorias para a agricultura familiar, diminuição da miséria e do trabalho escravo, maior acesso à alimentação e à educação. Segundo o pronunciamento, "...É verdade que ainda há muito a se avançar em várias áreas vitais do Brasil, mas não há como negar que o atual governo do PT na Presidência da República tem favorecido a garantia dos direitos humanos da população brasileira, o que, com certeza, não aconteceria num "império de iniquidade". Está ficando cada vez mais claro que os pregadores que anunciam dos seus púlpitos o início de uma suposta amplitude do mal, numa continuidade do PT no Executivo Federal, são os que estão com saudade do Brasil ajoelhado diante do capital estrangeiro, produzindo e gerenciando miséria, matando trabalhadores rurais, favorecendo os latifundiários, tratando aposentados como vagabundos, humilhando os desempregados e propondo o fim da história".
Constrange-me tanto fundamentalismo religioso, segundo o qual existem apenas alguns poucos pecados dos quais os fiéis devem se afastar, especialmente os sexuais de toda ordem e aborto. Toda a injustiça do mundo, todo o pecado social é questão de menor destaque. Constrange-me ter que escrever sobre a intolerância que aflora em nosso meio.
Sinto saudades de uma igreja que infelizmente, devido a minha pouca idade, pouco pude conhecer, a igreja de Dom Helder Camara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Dom José Maria Pires "Dom Pelé", de Dom Mauro Morelli, Frei Leonardo Boff e tantos outros, que lutaram pelo restabelecimento da democracia, que abraçaram a luta por uma sociedade mais justa, para que o reino de Deus se realizasse aqui nesta dimensão. Sinto saudades das inspiradoras missas do padre Jefferson Nogueira da Matta, que de lá da minha saudosa Apucarana no Paraná foi missionar em Guajará Mirin, Rondônia. Igreja essa que infelizmente não encontrei aqui na acolhedora Dourados no Mato Grosso do Sul.
É inconcebível que qualquer líder religioso, valendo-se de seu poder simbólico tente manipular as consciências de seus fiéis para que em nome de valores religiosos fundamentalistas votem nesse ou naquele candidato. Cabe sim aos lideres religiosos o estímulo ao debate de ideias e à livre decisão do voto por parte dos fieis. Agindo assim uma igreja será libertadora e não aprisionadora, com isso poderemos caminhar para uma sociedade cada vez mais justa. Acho que julguei demais neste artigo, talvez a trave nos meus olhos seja grande demais, então já peço desculpas e, por favor, não me mandem para as trevas junto com a Dilma, pois tenho medo do capeta, por sorte este meu medo não é tão grande quanto o que tenho de Serra na presidência.
[Nota da edição: Leia também - Norma assinada por Serra orientava sobre como fazer o aborto - que traz na sequência uma condenação enfática da 45ª Reunião Ordinária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)].
* Mestre em História pela UFGD e doutorando na mesma área pela UNESP/Assis-SP, cristão católico em atitude rebelde
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