Relato escrito por Celso Athayde
Noite de São João, 1999. O Felha ligou pro meu celular para avisar que mais um Falcão tinha partido em cruz, tinha morrido. Não era nada de anormal se considerássemos a vida que eles levam, mas, pensando bem, era anormal até demais, se considerarmos que são jovens e que são o futuro do Brasil.
E se não são, é porque o Brasil não tem futuro. A frase que eu mais escutava é que esses rapazes querem vida fácil, por isso não trabalham, mas não, vida de Falcão não é nada fácil. E mais, os caçadores de Falcão também não foram agraciados com a ociosidade, eles são caçadores e, muitas vezes, a caça.
Felha ligou pedindo para separar a câmera, que ele ia cobrir o enterro no dia seguinte, que a mãe do garoto tinha ligado para avisar. Mesmo o convite sendo uma iniciativa da família, pra nós, era sempre constrangedor. Apesar de ter um lado positivo nisso tudo. É que nunca filmamos os Falcões em seus ambientes sem que eles concordassem e, em algumas oportunidades, suas mães tinham que concordar também. Por isso temos depoimentos das mães, além dos menores marginais. E, se suas mães nos chamavam depois para filmar os velórios, era a prova cabal de que tinham entendido nossas propostas e argumentos, tinham comprado nossa luta. Era porque elas, a exemplo de seus filhos, acreditavam que esse projeto poderia, não resolver as suas vidas, mas trazer luz para o entendimento de muitas outras e, assim, poupá-las. Esse talvez seja o melhor resumo. Esse nosso documentário, assim como os livros que surgem junto com ele, deve ser o reflexo da vida, apesar da morte.
Era, sei lá eu, acho que o sexto, oitavo Falcão morto, não sei direito. Só sei que era mais um pra botar na conta.
Felha, como de costume, pegou os equipamentos e foi nos encontrar lá no cemitério, porque não teve velório. O corpo do garoto estava em decomposição. Ir lá ver o corpo era deprimente. Pior era ir lá com uma câmera. A impressão que dava era que estávamos torcendo para os garotos morrerem, e não era nada disso.
O Felha praticamente fazia tudo sozinho, nessas ocasiões. Eu não lembro de ter perguntado nada a ninguém nesses momentos de tristeza. Confesso até que morria de vergonha de estar ali, mas era o nosso dever, era o combinado com todos os Falcões.
Uma verdadeira choradeira. A mãe desse garoto, como a grande maioria, não se conformava de maneira nenhuma, apesar dela mesma nos ter alertado, e alertado ao próprio Falcão, sobre o provável futuro que o aguardava.
Essa pobre e triste mãe nos disse, em uma das entrevistas, que seu filho tinha que encontrar forças para sair daquela vida, que outros parentes dela — inclusive um irmão — já tinham morrido no crime e que essa vida só traria prejuízo. Todos esses exemplos não foram suficientes para desencorajar o rapaz, pelo contrário. O crime parecia fazer mais sentido do que qualquer palavra amiga de mãe, do que qualquer conselho seguro da família. A questão central era o fato de que os próprios Falcões não precisavam de conselhos, já que eles mesmos tinham plena consciência dos erros que cometiam e do pouco tempo de vida a que estavam condenados. Parecia que precisavam viver intensamente.
Mesmo sabendo de tudo isso, muito mais que cada um de nós, mesmo tendo passado anos da sua vida administrando essa questão, essa mãe se sentia traída pelo destino. Ela chorava, assim como todas as mães chorariam. Eu particularmente conhecia bem essa dor.
Minha mãe derramou essas lágrimas. Meu irmão, Negão César, sumiu. Se estivesse vivo, teria hoje 44 anos. Se foi há, pelo menos, 13. Me ligaram dizendo que ele tinha tido uma briga de trânsito e que foi parar no morro do Cajueiro em Madureira. Eu não sabia se era verdade, mas era a única versão que explicava o desaparecimento. Meu irmão nunca teve envolvimento com o crime. Ele só tinha um defeito: não tinha noção do perigo e, se tinha, o subestimava sempre. Segundo pessoas que passavam na rua, ele teve seu carro abalroado por um outro com alguns homens dentro e foi atrás para tentar reaver seu prejuízo. Os homens entraram no morro do Cajueiro, ele entrou atrás e, lá, descobriu que o carro era do bicho. Eles o mataram e o jogaram na avenida Automóvel Clube. Só que eu ainda não tinha essas informações no dia em que fui contatado e percorri hospitais e delegacias, até que estava quase desistindo. Mas vi entrando na DP uma radiopatrulha, me dirigi ao cabo e perguntei se sabia de alguma coisa sobre uma pessoa com as características do meu irmão. O cabo ficou me olhando e parecia que ia entrar em desespero. Ele baixou a cabeça, encostou na viatura e parecia sentir uma emoção forte, parecia ter sido tomado por uma grande tristeza. Ele me perguntou se eu não lembrava dele. Respondi que não, que nunca o tinha visto. Talvez não o reconhecesse por causa da farda. Ele me disse que a noiva dele era cliente da minha mãe, que também morava em Madureira e que naquela mesma semana tinha ido na casa da minha mãe experimentar umas roupas que havia encomendado e que ele era amigo do César. Ele me disse que, infelizmente, achava que o corpo que ele tinha visto era dele, que não tinha reconhecido porque estava muito inchado, mas que agora, depois de saber do seu sumiço, achava que era do meu irmão...
Pediu para eu entrar no carro e fomos lá confirmar se era. No caminho, ele informava aos seus superiores pelo rádio sobre o nosso deslocamento. Nunca na vida fui a um lugar com tanto medo de encontrar o que eu procurava. Em alguns momentos, torcia para não ser ele, pensava que meu irmão tinha que estar vivo. Em outros, pedia para a tortura acabar logo, pensava que nossa família não podia passar pelo drama de perder alguém que desaparece para sempre, sem deixar vestígios. E o carro seguia firme, rumo à avenida Automóvel Clube, local conhecido por ser uma grande concentração de desova humana. Eu sempre evitava passar por lá e, nas vezes em que passei, sempre havia corpos no chão. Nunca acreditaria que meu sangue pudesse marcar aquele chão algum dia. Minha mãe estava em pânico. Pessoas ligavam para ela o dia inteiro, uns para dizer que sentiam muito, outros para oferecer ajuda e ainda outros para encher o saco e apavorar mais ainda a minha querida mãe. Pedi para alguém levá-la para a casa de Sepetiba, uma praia cheia de lama que fica a uma hora e vinte minutos do centro da cidade. Enquanto isso, iria continuar a minha busca e, quando eu tivesse notícia, alguém levaria pra ela.
A viatura freou ao lado do corpo do meu irmão, percebi que era ele pela bermuda, era do tipo que minha mãe fazia. Saí do carro, o policial me abraçou. Não choramos, apesar de eu estar chorando agora ao escrever esse texto... desculpe...
O corpo do meu irmão estava no asfalto extremamente quente, o que fez sua cabeça inchar. Parecia um grande boneco, irreconhecível. Alguém tinha que ser forte. Minha mãe, a maior fortaleza que eu conheci na vida, a minha maior inspiração para as lutas que travo até hoje, havia entregado os pontos e aguardava o pior em Sepetiba. Meu irmão tinha cinco filhos, eu não podia fraquejar, tinha que levantar a cabeça, fazer o enterro e tocar a vida. De certa maneira, o jogo havia terminado pra ele, mas não para nós, a bola tinha que continuar rolando.
Uma missão me aguardava agora, avisar a minha mãe. Ninguém melhor do que eu poderia fazer isso, e se algum desastrado fosse lá, talvez eu tivesse que fazer mais um enterro. Segui para Sepetiba ao encontro de uma mulher que estava prestes a sair da tristeza e entrar em desespero, e eu seria, de certo modo, o responsável. Ela estava desacompanhada, estava na sala...
Desculpe... É difícil falar sobre isso... Prometo que não vou mais chorar...
Parei o carro na porta da casa, vi minha mãe na sala, sentada numa cadeira. Ela sempre foi a rainha das piadas, das sacanagens. Como eu iria falar que ela havia perdido uma metade de seu corpo?
Abri o portão, entrei. Ela levantou da cadeira com dificuldade, devia estar fraca, sem comer, sem dormir. Me olhou e disse:
— Não precisa dizer nada, meu filho... Eu já sabia. Só queria que você fosse embora e me deixasse aqui sozinha.
— Mãe, deixa eu...
— Não, filho, deixa mamãe aqui, preciso ficar sozinha.
— Tá, mãe.
Saí da casa, fui para a esquina pensar na vida, no futuro, nos sobrinhos, no enterro. Sentei num meio-fio e fiquei ali com a sensação de ter perdido as duas coisas que mais foram minhas na vida. Meu irmão e minha mãe...
Sim, mas vamos voltar para a mãe do Falcão.
Ela chorava, outras pessoas também choravam muito, era uma representação típica de um enterro de jovem, todos inconformados. Era triste ver sua esposa, que não passava dos 15 anos. Era doloroso ver seu filhinho de mais ou menos oito meses, dormindo nos braços da mãe. Quando os últimos punhados de terra foram jogados sobre o caixão, a mãe do Falcão explodiu na maior das crises de saudade do filho.
— Eu quero meu filho de volta! Eu quero meu filho!
Ao mesmo tempo, ela culpava o prefeito, xingava o governador, o presidente e também o pai do garoto.
Lembrar esta cena é triste. Seu desespero fazia todos chorarmos. Podemos chamar de solidariedade um choro coletivo, tendo a mãe como maestrina da tristeza? Pobre mãe, triste mãe!
Deixei o Felha e o Bill para trás e comecei a andar rápido para sair de perto daquele quadro deprimente. Apesar do sol escaldante do Rio de Janeiro, os familiares não tinham nenhuma pressa para ir embora e não arredavam os pés da cova. Continuei caminhando até que cheguei perto do portão de saída, que fica ao lado de uma capela onde havia um velório. Outras famílias estavam ali reunidas, chorando e lamentando seu defunto, não havia diferença entre os sentimentos. Só que nesse caso eu não sentia nada. Era como se eu tivesse achado um álbum de fotografia na rua e desfolhasse as pessoas estranhas.
Eles estavam chorando seus entes queridos, mas não havia nada em comum entre nós. A única coisa que me aproximava deles eram as árvores entre a rua e a entrada da capela, sob as quais eu me escondia do sol, para aguardar a volta do meu cortejo fúnebre.
— Eu quero meu filho de volta! Jesus, eu quero meu filho, pelo amor de Deus! Eu não mereço isso. O Estado não dá apoio.
Era a mãe do outro falecido, uma mulher preta, de lenço, fisicamente muito diferente da mãe do Falcão, mas historicamente idêntica, pois as duas eram negras. Ela chorava e era abraçada por outras pessoas.
Seria só mais um enterro, se não fosse pelas palavras das mães acusando o governo. Por isso, passei a ficar atento também àquele velório.
— Sangue bom, como foi?
Era eu me intrometendo na morte alheia e perguntando a um rapaz que veio dividir comigo a sombra da mangueira.
— Foi tiroteio, ele foi baleado e não resistiu.
Como eu não tinha visto ninguém dar tiro de festim pro alto e não vi ninguém de farda, o cara só podia ser bandido, já que ele era preto e morreu de tiro. Eu raciocinava exatamente como fui treinado, estava reproduzindo a lógica branca asfaltista, condenando o jovem morto e lhe negando a possibilidade de ser um mártir. E não parei por aí, fui adiante:
— Qual era a comunidade dele?
Essa pergunta não era simples. O seu real objetivo, oculto na simples indagação, era saber a qual facção o morto pertencia. Dependendo da área dele, meu sentimento poderia mudar um pouco. Eu poderia até mesmo não achar tão ruim assim, mas, se alguém me perguntar isso, eu nego até a morte, tudo em nome do sentimento humanitário.
— Não, responsa, ele não era bandido não, ele era PM, morreu trocando tiro — disse o rapaz, que devia ser primo do morto, talvez.
— Foi mal amigão! Foi a minha primeira mancada do dia.
Pressionei o beiço superior no inferior, imprimindo o quanto eu sentia esse fato, e dei as costas para o rapaz, encerrando o assunto. Lembrei então o comportamento das duas mães. Não vi o corpo do PM que morreu, nem sei se ele deixou mulher e filhos. Mas uma coisa é certa, deixou uma mãe eternamente apaixonada, igual à mãe do Falcão e à minha. Se este livro fosse ficção, se o que estou escrevendo não tivesse compromisso com a estrita obrigação de dizer a verdade, eu criaria uma história na qual o PM e o Falcão tivessem sido abatidos um pelo outro, na mesma favela, e, no final, descobriríamos que as mães dos mortos trabalhavam na mesma fábrica de calcinha... Além disso, que as esposas dos falecidos estudavam na mesma escola. Mas não, não vou fazer isso, pois cada um de nós sabe que essa realidade é bem próxima e é perfeitamente possível, sim.
O fato dos dois estarem sendo enterrados no mesmo cemitério, o fato das suas mães serem idênticas, de terem familiares da mesma cor e origem me fez viajar por muitas outras histórias das quais tive notícia. Histórias de Falcões que eram caçados de dia pela polícia e que caçavam policiais em blitz à noite para vingar a morte de seus comparsas. Mas em nenhum momento, eu tinha parado para pensar sobre essa questão com a qual me deparava.
A questão era muito simples: o sistema é branco e opressor. Os oprimidos, em geral, são os pretos e os pobres que historicamente sempre cumpriram bem o papel de se matarem para atender à sede de sangue do poder. E naquele momento eu via, sem ninguém me contar, que as lágrimas que caíam não eram dos governos que as mães acusavam de serem os responsáveis pelas mortes de seus filhos. Eram das mães, pobres, pretas, que podiam perfeitamente ser irmãs de sangue e, naquele momento, eram irmãs de dor, irmãs de sangue derramado pela arma da ignorância.
Meu cortejo chegou, meu cortejo passou, e eu embarquei nele, triste e cabisbaixo, pensativo. Alguns participantes olhavam para a dor da família do PM sem saber de nada, sem nada comentar. Seguimos o nosso rumo. Saímos pelo portão principal e todos, ou quase todos, fizemos o sinal-da-cruz, em respeito aos mortos. Não comentei com ninguém aquele fato, guardei comigo a reflexão que hoje divido com você. Talvez as guerras e as mortes entre os ditos marginais e policiais só mudem quando eles tiverem a consciência de que foram gerados nos mesmos úteros.
No Folha 13
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