Dan Mitrione |
Esse facínora, à serviço da CIA, "ensinou" tortura no DOI-CODI de MG e SP, no Brasil, onde foi exaltado pelos militares da época no poder brasileiro. No Uruguai, os guerrilheiros do grupo Tupamaros puseram um ponto fin al em sua carreira de criminoso sustentado pelos ditadores à serviço do sistema capitalista.
O dia em que a guerrilha do presidente Mujica executou o mestre da tortura Dan Mitrione
O cabo Armando López e o soldado José Misvini pegavam no batente às 4 horas da manhã. Chegavam já uniformizados ao quartel, localizado na rua 8 de outubro, zona nordeste de Montevidéu, um pouco antes do início de seu turno. A rotina não foi alterada no dia 10 de agosto de 1970. Saíram para a ronda de carro, enfrentando um frio cortante. Misvini estava ao volante e dirigia lentamente, à espreita de alguma ocorrência.
Desceram a rua Avellaneda até a Lucas Moreno e dobraram à esquerda. Duas quadras depois, entraram na Coronel Lasala, uma ruela perdida da região, muito escura. Deram conta de um Buick verde com capota branca, ano 1948, estacionado sem esmero. A marca, o modelo e a cor correspondiam à descrição de um carro roubado naquela noite, por volta das 20h. Checaram os registros pendurados em uma prancheta. O número da placa era o mesmo.
De armas em punho, saltaram para o chão e se aproximaram do veículo suspeito. Três fios de sangue escorriam sobre o asfalto, formando uma pequena poça. Assustados, os policiais iluminaram o interior do Buick. Um corpo estava caído no banco traseiro, coberto por uma manta azul. O morto, cabelo tingido de preto e uma bandagem sobre o tórax, vestia uma roupa amarrotada, calça cinza de terno, camisa social branca manchada de sangue, paletó sem gravata.
Logo reconheceram a vítima. Afinal, sua foto estava espalhada por toda a cidade e havia mais de uma semana que as capas dos jornais seguidamente a estampavam. O cadáver era do norte-americano Dan Mitrione, 50 anos, sequestrado dez dias antes. Os guerrilheiros tinham cumprido sua palavra e executado o refém. Dois tiros na cabeça do agente que veio do norte serviram de resposta a um governo que se recusou a trocar sua vida pela libertação de presos políticos.
O comando responsável pela ação (que inspirou o longa-metragem Estado de Sítio, do diretor grego Constantin Costa-Gavras) pertencia ao Movimento de Libertação Nacional, mais conhecido como Tupamaros, que recorreu à luta armada contra a ditadura uruguaia. Entre os dirigentes dessa organização estava Pepe Mujica, o atual presidente do país. Participou de assaltos e sequestros promovidos pelo grupo. Chegou a ser ferido em combate contra forças policiais. Passou mais de treze anos preso.
Eleutério Fernandez Huidobro, outro importante ex-dirigente tupamaro, chegou ao Senado em 1990 e, reeleito, tem mandato até 2015. Ele lembra as circunstâncias nas quais a operação foi levada a cabo.
Tempos difíceis
O primeiro semestre de 1970 não tinha sido fácil para a guerrilha uruguaia. A polícia apertava o cerco e aprendia a enfrentar os lances audazes do MLN. As instituições ainda funcionavam, ao menos formalmente, mas o presidente Jorge Pacheco Areco (1920-1988) dava os últimos retoques na montagem de um fabuloso sistema repressivo. O alvo principal eram os tupamaros. Centenas de militantes estavam presos, entre eles alguns de seus principais dirigentes. O governo tinha declarado uma guerra aberta ao grupo insurgente.
Nosso objetivo, naquelas condições, era sequestrar tantos funcionários do Estado ou diplomatas de outros países quantos fossem necessários para negociar a soltura dos nossos presos, recordou Huidobro. Mitrione não era o único nome da lista, mas sua captura fazia parte do que chamamos, na época, de Plano Satã. Queríamos salvar nossos companheiros da tortura e da morte. O Estado os havia capturado, nós demos o troco.
As informações sobre o norte-americano eram bastante detalhadas. Nascido em Richmond, Indiana, Mitrione tinha sido chefe de polícia em seu estado natal. Recrutado pela CIA, foi aluno da Academia Internacional de Polícia, uma escola para formação de especialistas em contra-insurgência. Seus chefes lhe entregaram uma série de tarefas na América Latina. O primeiro posto que recebeu no exterior foi na República Dominicana, após a invasão do exército dos Estados Unidos em 1965. Depois passou quase cinco anos no Brasil, até o final de 1969.
Currículo
Sediado em Belo Horizonte, Mitrione era um dos principais responsáveis pelo treinamento dos agentes brasileiros em técnicas de investigação e tortura. Transferiu-se em seguida para o Uruguai. Em todos os países sua carteira de trabalho identificava-o como funcionário da Oficina de Segurança Pública, uma consultoria governamental atrelada às embaixadas cujo objetivo anunciado era dar assistência no combate à criminalidade.
A ficha de Mitrione chegou aos arquivos dos tupamaros nas primeiras semanas do último ano de sua vida. Julio Marenales, 80 anos, até hoje dirigente do MLN, recorda com ironia a fonte daqueles dados preciosos. Nosso informante foi um agente que o serviço secreto cubano havia infiltrado na CIA. Seu nome era Manuel Hevia Cosculluela. Ele trabalhava com Mitrione. Voltou a Havana no início de 1970, mas já tinha repassado todas as coordenadas necessárias para a operação.
Pelos relatos de Cosculluela, foi possível descobrir também os vínculos da CIA com grupos religiosos e o apoio financeiro obtido por Mitrione para um amigo de infância, Jim Jones, o homem que seria responsável, em 1979, pelo suicídio de 900 seguidores de sua seita na Guiana.
Captura
A captura de Mitrione ocorreu às 8h25 do dia 31 de julho, uma sexta-feira. O funcionário norte-americano despediu-se da família, diante de sua residência, na rua Pilcomayo, bairro de Malvín, uma aprazível área de classe média alta. Sentou-se no banco de passageiro do Ford dirigido por Manuel Emílio González, que o levaria até seu escritório.
Antes de alcançarem os primeiros 50 metros do trajeto, quando dobraram na rua Alejandro Gallinal, o caminho foi fechado por uma caminhonete Chevrolet, cor azul, que parecia realizar uma manobra inocente. Uma outra caminhonete, da mesma marca, porém verde, bateu na traseira do veículo que transportava Mitrione.
Trecho do filme Estado de Sítio, do cineasta Costa-Gavras
Quatro guerrilheiros, armados, imobilizaram o chofer e capturaram o agente americano, que tentou resistir e acabou ferido com um tiro no peito antes de ser carregado para o automóvel azul parado logo à frente, onde uma outra equipe esperava para levá-lo ao cativeiro. Os responsáveis pelo abalroamento fugiram a pé, pela avenida costeira que acompanha o rio da Prata.
Contato
Oito horas depois uma mulher ligou para a redação do jornal El País. Informou que um envelope poderia ser encontrado no banheiro feminino da Galeria Delondon, no centro da cidade. Nele havia um cartão de Mitrione e um manifesto. O Movimento de Libertação Nacional exige a imediata libertação dos presos políticos que oportunamente daremos a conhecer para colocar em liberdade os diplomatas detidos por nossa organização, dizia o documento.
Na mesma manhã, outras três pessoas foram aprisionadas pelos tupamaros. Dois americanos, Michael Gordon Jones e Nathan Rosenfeld, assessores da embaixada, conseguiram escapar graças a trapalhadas dos sequestradores. Mas o cônsul brasileiro, Aloysio Dias Gomide, somente seria libertado em fevereiro de 1971, depois da família pagar um resgate de 250 mil dólares. Um juiz, Daniel Pereira Manelli, já estava em poder do MLN. Outro compatriota de Mitrione, Claudio Fly, técnico agrícola, foi capturado para substituir os reféns fugitivos.
O Plano Satã parecia correr em ordem. Tinha sido pensado como uma operação de longo prazo, sustentado sobre uma rede de casas bem equipadas e camufladas conhecidas como cárceres do povo. A ideia era manter o governo sob permanente pressão, realizando novos sequestros quase todos os dias, até que Pacheco Areco aceitasse negociar com a guerrilha. A polícia reagiu com dureza, vasculhando casa por casa de Montevidéu. Centenas de prisões foram efetuadas, todo suspeito de simpatizar com esquerdistas corria riscos.
Desfecho
Os fatos precipitaram-se a partir de 7 de agosto, outra sexta-feira. Um telefonema anônimo, recebido na véspera, levantou suspeitas sobre um endereço localizado na rua Almería, número 4.630, apartamento 104. A polícia estava a um passo do golpe mais duro que já havia assestado contra o MLN. Quando os soldados irromperam na residência sitiada, com as metralhadoras rasgando o ar, suas expectativas se confirmaram. Caíram presos Raúl Sendic, o líder máximo dos insurgentes, e outros sete dirigentes nacionais da organização.
Mitrione estava em outro local. Mas o comando responsável por sua guarda reagiu prontamente. Uma mensagem deixada em um bar, no dia seguinte, dava prazo final para a libertação dos presos. O governo Pacheco Areco não deu respostas à proposta de troca de prisioneiros. Em consequência, uma vez que não se concretiza a negociação, o MLN decidiu executar Dan Mitrione às 12h desse domingo, 9 de agosto.
O refém percebia que sua sorte estava lançada. Os companheiros encarregados da operação perguntaram a Mitrione se ele tinha, naquelas últimas horas, alguma idéia de como demover o governo uruguaio ou a Casa Branca da intransigência em que haviam encalhado, relembra Marenales. Mas ele disse que nada mais se podia fazer. Chegou a declarar que nós, depois de anunciado um prazo final, não tínhamos outra saída salvo executá-lo ou sairmos desmoralizados. Tinha razão, era a lógica da guerra.
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Do CMI Brasil
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