quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

70 anos de Amélia

O compositor e ator Mario Lago em capa de disco de 1991

Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)

Nunca vi fazer tanta exigência / Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência / Não vê que eu sou um pobre rapaz...

- Agora em 2011 vamos comemorar 70 anos de criação da canção 'Ai que saudades da Amélia', e não deixa de ser uma proeza sobreviver com tanta força no imaginário brasileiro, aí tem coisa...

- o encontro entre Ataulfo Alves e Mario Lago deu muito certo, chega a ser difícil pensar que primeiro um fez a letra e depois o outro colocou música, o resultado é tão orgânico, a canção vai fluindo com uma inteireza que dá gosto...

- talvez seja uma das primeiras oportunidades (em termos de cultura de massa) de discutir a mulher brasileira, e de lá pra cá foram 70 anos de grandes transformações...

- hoje nós estamos mais para 'deixa a Dilma me levar' que para 'meu bem, o que se há de fazer?', é isso, são milhões de mulheres exercendo liderança familiar e profissional...

- talvez justamente por isso a Amélia tenha permanecido como uma espécie de pano de fundo, oferecendo uma medida das transformações que iam ocorrendo;

- mas a personagem sempre aparece nas conversas como paradigma da passividade, 'não pense que eu sou uma Amélia não, viu!', é o que muitas mulheres dizem hoje (mesmo quando são)...

- lá em 1942, houve um concurso para escolha do melhor samba pro Carnaval, e foi dureza enfrentar a 'Praça Onze' de Herivelto e Grande Otelo. Mario Lago fez um discurso esgoelado louvando a Amélia como essência da mulher brasileira! Resultado: as duas canções ganharam o prêmio.

- sobre a tal inteireza da canção: veja que Ataulfo pega o verso de Mario Lago e retira dele um ritmo que já está lá dentro. A acentuação interna do verso parece que já traz o ritmo sincopado do início (observe as proporções de 1+2+2+1+2 )


- essa proporção aponta diretamente para o universo rítmico africano; pode ser entendida como a parte sincopada do ritmo ijexá; e como o tema se espalha pela canção unificando discurso e rebolado, já viu né!

- então Amélia dançava ijexá, pelas mãos de Ataulfo? Amélia era negra, branca, morena, mulata, era tudo isso?

- o que estou dizendo é que o gênero samba passou a ser um caldeirão de fervuras e refervuras de gestos rítmicos africanos no Brasil; quanto a Amélia, existiu mesmo, foi empregada de Aracy de Almeida. Ela e o irmão (Almeidinha) falavam tanto dela que Mario Lago acabou achando que aquilo daria samba...

- mas olha, todo mundo só concentra a discussão em torno da personagem Amélia, mas tem muito mais em jogo; quem está cantando é um macho-lírico, afinal tudo não passa de suas representações... lembra Bentinho e sua Capitu;

- sempre me interesso pela 'Outra', aquela que não tem nome e ocupa a maior parte do texto; em grande medida é ela que define a Amélia, por contraste...

- pois é, o macho-lírico está dolorido com essa turbinada que faz exigências... Ora, se faz exigências é porque sabe o valor da mercadoria, deve ser uma gostosona...

- ela é voraz (tudo que vê quer...), interesseira e superficial (só pensa em luxo e riqueza) e apronta (...o que você me faz); coitado do cara...

- e assim, do lado dele o que aparece é rancor, decepção, queixumes (mas o desejo está lá...) tudo isso abrindo o caminho para a saudade idílica da Amélia...

- o artesanato da canção se alimenta dessa dramaticidade, seja pela dinâmica dos contornos melódicos, pelo tratamento sequencial de várias Dominantes individuais (Lá, Mi e Ré, em Dó maior), ou pela proliferação de cromatismos...


- queixas e idílios das duas primeiras estrofes são encaixados nesses quatro gestos (todos tem um clímax e depois descem); a presença das notas dó#, fá#, sol# e o conectivo sib, estranhas a Dó Maior, gera uma série de inflexões interessantes e 'chorosas'; conjuntos complexos são formados por essas inflexões.

- no plano conceitual, o que está em questão é mais do que a descrição de um tipo de mulher, é toda a dinâmica de gênero e de sexualidade; e isso fica bastante claro na análise da oposição entre as duas imagens (uma santa, a outra... 'turbinada')...

- e o 'macho-lírico' que as imagina, o qual exerce o poder de nomear uma 'mulher de verdade', confirma que na dialética da sexuação, só um outro pode dizer 'Tu és mulher!'...

- mas diz isso na direção contrária ao desejo, celebrando uma mulher sem vaidade - um atributo ancestral da feminilidade e gatilho da própria masculinidade!

- o que seria do desejo masculino sem o jogo de esconder e revelar tão próprio da vaidade? A mulher sem vaidade não seria meio homem?

- ou Amélia seria a única solução para um macho manter o seu poder e autonomia? Será que a canção anuncia o ocaso desse macho brasileiro dos anos 40 e pretende se firmar como uma espécie de canto do cisne?

- não foi por acaso que inventaram outro final para a canção: 'Amélia que era mulher de verdade, tirava a roupa e ficava à vontade!' A paródia reúne para deleite do ouvinte os pólos do conflito - a abnegação e a sacanagem... - e assim o caso fica resolvido. [Terra Magazine].

Paulo Costa Lima é compositor. Pesquisador pelo CNPq. Professor de composição da Universidade Federal da Bahia.
www.myspace.com/paulocostalima - http://www.paulolima.ufba.br/

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