Gabrielle Giffords é uma deputada democrata moderada, quase conservadora (blue dog, na gíria política dos EUA), a ponto de defender a liberdade do porte de armas como “tradição do Arizona”. Ainda assim, foi favorável à reforma da Saúde do governo Barack Obama. Por isso e por ter sua base em um distrito tipicamente conservador do Arizona, que pareceria ser fácil virar a favor do Partido Republicano, foi um alvo preferencial do Tea Party nos últimos anos.
Alvo no sentido literal da palavra. Para a eleição do ano passado, a propaganda de seu rival apelou: “Acerte no alvo da vitória em novembro, ajude a remover Gabrielle Giffords do cargo disparando uma automática M16 com Jesse Kelly”. Esse candidato, derrotado por uma margem estreita (4 mil votos), ecoava a presidenciável Sarah Palin, que colocou Gabrielle, juntamente com mais 19 deputados democratas a favor da reforma da Saúde, literalmente na alça de mira do seu mapa de inimigos políticos a serem eliminados, publicado no Facebook.
Em 8 de janeiro, um encontro de Gabrielle com eleitores no pátio de um supermercado de Tucson foi atacado por Jared Loughner, jovem de 22 anos recusado pelo Exército e suspenso da universidade por evidente instabilidade emocional. Não teve, porém, dificuldades em adquirir armas automáticas e munição. Das 20 ou 30 pessoas- presentes, 14 foram feridas, inclusive a deputada, e seis mortas, entre elas o juiz federal John Roll e uma menina nascida no fatídico 11 de setembro de 2001. A carnificina só não foi maior porque, ao trocar o pente de munição, Jared deixou este cair sendo apanhado por uma senhora de 61 anos, enquanto dois idosos (um deles ferido) e um jovem imobilizavam o criminoso.
A deputada recebeu um tiro à queima-roupa na nuca que lhe atravessou o cérebro, tão grave que as primeiras notícias a deram por morta. Sua vida foi salva por um estudante de medicina, imigrante mexicano naturalizado estadunidense, que a socorreu debaixo de fogo. Mas parece improvável que recupe-re todas as suas faculdades mentais: sobreviver já foi quase um milagre.
A legislatura do Arizona teve de aprovar uma lei em caráter de emergência: proibiu manifestações junto a funerais. A Igreja Batista de Westboro – a mesma que há alguns meses provocou um incidente internacional ao ameaçar queimar o Alcorão em público – pretendia ir ao enterro da menina assassinada proclamar que “Deus enviou o atirador para enfrentar uma América idólatra”. Nenhuma diferença em relação aos fanáticos paquistaneses que festejam o assassino do governador liberal do Punjab.
Não foi um relâmpago em céu azul. Em março, a porta de vidro do escritório de Giffords foi despedaçada por um tiro de espingarda, logo depois do voto a favor da reforma da Saúde. Manifestações do Tea Party à sua porta e e-mails ameaçadores eram rotina, e a deputada andava armada. Paul Krugman, no New York Times, perguntou aos leitores se estavam surpresos: ele não, desde o clima de ódio surgido na disputa entre Obama e John McCain, em 2008.
O Arizona, estado do ex-candidato presidencial e senador republicano, tornou-se o foco da mais virulenta exaltação republicana. Aprovou leis anti-imigrantes, contestadas pelo governo federal, e, em especial, pelo finado juiz Roll (ameaçado de morte por isso), que permitem a policiais deter qualquer “suspeito” de ser imigrante sem documentos – na prática, qualquer um com aparência ou sotaque hispânico, como o jovem que socorreu Giffords, se não tiver seus documentos no bolso. O estado proibiu o ensino bilíngue, embora seja um antigo território mexicano com comunidades hispânicas e indígenas anteriores à anexação pelos Estados Unidos e proibiu escolas que recebem fundos públicos de darem cursos que “promovam ressentimento de uma raça ou classe, sejam projetados para estudantes de um grupo étnico ou advoguem a solidariedade étnica em vez do tratamento dos alunos como indivíduos”.
As ideias de Loughner, por confusas que pareçam, ecoam o rancor latente das milícias direitistas e das bases do Tea Party contra um governo federal que supostamente oprime a maioria WASP em favor de negros e imigrantes. Como muitos na direita, insistia em que a Constituição dos EUA foi desfigurada pelas 13ª, 14ª e 15ª Emendas, que, aprovadas após a Guerra Civil, aboliram a escravidão, deram cidadania e direito de voto a todos os naturais dos EUA e legitimaram a dívida pública, abrindo caminho à emissão de moeda sem lastro, pecado mortal para a direita. Era um admirador da revista racista conservadora American Renaissance e escreveu que pretendia “matar essa mulher escandalosa”, a deputada Giffords. Por sinal, judia, o que pode ter sido uma das razões para o ataque, visto que Loughner tinha o Mein Kampf como um de seus livros favoritos – com obras de Ayn Rand, George Orwell e o Manifesto Comunista, é verdade. O que concluir?
Quando algum muçulmano, seja qual for sua orientação sectária e política, comete um atentado em qualquer parte do mundo, comentaristas das mídias norte-americanas e europeias raramente hesitam em responsabilizar mulás, xeques e aiatolás que pregam a Jihad e condenam os governos do Ocidente, quando não a religião islâmica em si, ou o próprio Maomé. Quando um estadunidense que repete o discurso de ódio do Tea Party contra o governo de Obama dispara contra uma deputada democrata e seus apoiadores, seria de se esperar que igualmente criticassem a retórica exaltada de Sarah Palin e dos comentaristas da Fox News.
Poucos se atrevem, porém. A julgar pelo consenso da mídia, um árabe, afegão ou africano que se envolve em um ato violento é, por definição, um fanático manipulado por líderes como o aiatolá Khatami ou Bin Laden, mesmo que deles não tenha recebido ordens específicas. Mas um estadunidense branco que faz o mesmo é, também por definição, um desequilibrado por cujos atos ninguém mais pode ser responsabilizado. Teria sido mero exercício da liberdade de expressão a propaganda eleitoral republicana.
Até o correspondente nos EUA de The Economist saiu em defesa do Tea Party, acusando Krugman de “retórica tóxica” e de ser “louco”, por pedir aos republicanos que façam um exame de consciência pela propaganda violenta que estimulam desde a campanha presidencial, especialmente a da Fox News. Contrastou até com o presidenciável republicano Tim Pawlenty, que criticou, ainda que cautelosamente, o malfadado mapa de Sarah Palin e com o xerife do condado, que responsabilizou o clima de intolerância no estado e no país.
São poucos os que têm feito críticas tão duras quanto a gravidade dos disparates do Tea Party deveria exigir. Entre esses, Jonathan Schell, pesquisador do The Nation Institute e especialista em paz internacional e armas nucleares, que em dezembro denunciou a retórica antissemita de Glenn Beck, comentarista da Fox que atacou o financista judeu e liberal George Soros com retórica quase nazista, -acusando-o de dirigir uma conspiração “progressista” a envolver de Woodrow Wilson e Obama ao próprio Hitler.
Tanto teorias delirantes quanto incitações “retóricas” à violência têm sido rotina nessa rede. Já em 2008, a jornalista Liz Trotta “brincava”: “E agora temos o que alguns estão lendo como uma sugestão de que alguém apague Osama, hã, Obama. Bem, ambos, se pudermos”. Beck fantasiou no ar sobre matar Michael Moore “com suas mãos nuas”, com envenenar a ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi e com o deputado democrata Dennis Kucinich “queimando até a morte”. Bill O’Reilly disse que o colunista Dana Milbank, do conservador Washington Post, deveria ser “decapitado” por criticar a cobertura eleitoral da Fox em novembro de 2010. No site Fox Nation, alimentado por fãs da rede, surgem regulamente mensagens pedindo o assassinato de Obama.
A tolerância para com a incitação à violência, mesmo “irônica”, precisa ser rediscutida. Uma coisa é uma incitação ser tema de uma obra de ficção ou ser verbalizada por um cidadão isolado ou um grupo marginalizado. Outra é partir de políticos importantes de um dos dois grandes partidos, ou de comunicadores de grande audiência de uma das principais redes de mídia do país.- Que se tenha chegado a esse ponto é um indicador sério de que o processo civilizador dos Estados Unidos, como diria o sociólogo Norbert Elias, está fracassando e em plena reversão. Nos anos 40, Franklin Roosevelt não parecia correr riscos ao desfilar em carro aberto. Nos anos 60, John Kennedy mostrou que isso não era mais possível. Hoje, Obama não se atreve a se deslocar se não for em um tanque de oito toneladas disfarçado em limusine, cercado por agentes federais. Logo, também deputados e autoridades menores também não poderão estar em público sem uma operação de guerra.
Como na Alemanha de Weimar, respira-se um clima de ódio, no qual veteranos e desempregados brancos, ressentidos com uma democracia laica e não racial que consideram uma traição à “verdadeira Alemanha”, digo, “verdadeira América”, são continuamente incitados à violência, e isso começa a ser aceito como fato da vida. E, o que é pior, há em países como o Brasil quem se disponha a imitar esse modelo, como se viu na campanha eleitoral de 2010. [CartaCapital]
Antonio Luiz M. C. Costa
Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica.
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