Passa Palavra - [Amy Goodman] A estação alternativa de rádio estadunidense Democracy Now, na pessoa da sua principal animadora Amy Goodman, entrevistou à distância o linguista, filósofo e activista libertário Noam Chomsky, em vésperas do seu 82º aniversário. Uma longa conversa que publicamos em duas partes – hoje a segunda.
AG: Agora, sobre o seu artigo “Outrage Misguided” [“Indignação desviada”] publicado a seguir às eleições intercalares [de começos de Novembro de 2010] e sobre o que, depois delas, irá acontecer aqui. Pode falar do movimento Tea Party [corrente da direita mais conservadora no interior do Partido Republicano]?
NC: O Tea Party representa talvez uns 15 ou 20% do eleitorado. Gente relativamente abastada, branca, autóctone, claro, de tendência tradicionalista. Mais de metade da população diz ter-lhe dado algum apoio, ou ter apoiado a sua mensagem. O que essa gente pensa é extremamente interessante. Quero dizer que as sondagens revelam taxativamente que as pessoas estão zangadas, descontentes, hostis, contra tudo.
A causa mais importante é seguramente o desastre económico. Não é apenas uma catástrofe financeira, é um desastre económico. Na indústria manufactureira, por exemplo, a taxa de desemprego está ao nível da Grande Depressão, esses postos de trabalho não serão recriados. Os proprietários e os administradores estadunidenses há muito tempo tomaram a decisão de que podem obter mais lucros por meio de complicados negócios financeiros do que através da produção. De modo que as finanças – e isto vem dos anos sessenta, aumentou sobretudo com Reagan, e depois – … A economia foi “financiarizada”. No conjunto dos lucros das empresas, a parte das instituições financeiras cresceu enormemente. Poderá ser algo como um terço, na actualidade. Ao mesmo tempo, exportou-se a produção. Se compramos algum artefacto, é chinês. A China é uma fábrica de montagem para o centro de produção do nordeste asiático. As peças e componentes chegam dos países mais avançados e dos EUA, assim como a tecnologia. Por isso, sim, é um sítio barato para montar coisas e, na volta, vendê-las aqui. Semelhando ao que acontece com o México, e agora com o Vietname, etc. É a maneira de conseguir lucros.
Isso destrói a sociedade neste país, mas isso não preocupa a classe proprietária e a classe dos gerentes. Esses só se preocupam com os lucros. É o que impulsion
a a economia. O resto é consequência. As pessoas andam muito zangadas com isso, mas parece que não o entendem. De modo que essa mesma gente, que constitui uma maioria, e que diz que Wall Street [o principal centro financeiro dos EUA, em Nova Iorque] é que tem a culpa da crise actual, vota nos republicanos. Os partidos estão completamente nas mãos de Wall Street, mas os republicanos muito mais do que os democratas. E o mesmo vale para outros temas que venham a seguir. O antagonismo contra todos é muito forte – um autêntico antagonismo, a população não gosta dos democratas, mas odeia ainda mais os republicanos. Está contra as grandes fortunas. Está contra o governo. Está contra o Congresso. Está contra a ciência.
AG: Noam, gostaria de lhe perguntar: se fosse o principal assessor do presidente Obama, que conselho lhe daria neste momento?
NC: Dir-lhe-ia para fazer o que fez Franklin Delano Roosevelt perante a oposição das grandes fortunas: ajudar a organizar, a estimular a oposição pública e introduzir um grande programa populista, o que é possível. Estimular a economia. Não dar tudo de presente aos financeiros. Impor uma verdadeira reforma do sistema de saúde. A reforma da saúde que foi feita poderá ser uma ligeira melhora, mas deixa de fora alguns problemas importantes. Se o défice o preocupa, ele que preste atenção ao facto de que é quase totalmente atribuível às despesas militares e a este sistema de saúde absolutamente disfuncional.
A economia está um desastre. Oficialmente há 10% de desemprego, realmente será provavelmente o dobro. Muita gente desempregada há anos é uma imensa tragédia humana, mas é também uma tragédia económica. São recursos não utilizados que poderiam estar activos a produzir as coisas de que este país precisa. Os EUA estão-se convertendo numa espécie de país do terceiro mundo.
Há dias apanhei um combóio [trem] de Boston para Nova Iorque, a estrela do sistema ferroviário da Amtrak. A viagem durou uns vinte minutos menos do que o combóio que eu e a minha mulher tomávamos há sessenta anos entre Boston e Nova Iorque. Em qualquer país europeu, ou realmente em qualquer país industrial, teria demorado metade do tempo. E em muitos países não industriais. A Espanha, que também não é um país super-rico está a construir um combóio que anda a 300 km por hora. É só um exemplo. Os EUA precisam desesperadamente de muitas coisas: infra-estruturas decentes, um sistema educativo decente, melhor salário e mais apoio para os professores, todo o tipo de coisas. E as políticas que são levadas a cabo foram pensadas para enriquecer sobretudo as instituições financeiras. E há que lembrar: muitas das maiores empresas, como por exemplo a General Electric ou a General Motors, são também instituições financeiras, as finanças constituem grande parte das suas actividades. É bem pouco claro se essas manigâncias [tramóias] fazem algo pela economia; alguns economistas deste país – da tendência dominante – começam a levantar esse problema. Podem mesmo estar a prejudicar a economia, na realidade. O que fazem é enriquecer os ricos, e é esse o propósito das políticas.
Uma alternativa seria estimular a economia. A procura é muito fraca – essas grandes empresas estão atulhadas de dinheiro, conseguem lucros enormes. Mas não o querem gastar, não querem investir. O que querem é obter mais lucros com ele. As instituições financeiras não produzem nada, só movimentam o dinheiro e ganham dinheiro com diversos negócios. O público tem procurado consumo, mas pouco. Há que lembrar que houve uma bolha da habitação de 8 mil milhões [8 bilhões] de dólares que rebentou, destruindo os activos da maioria das pessoas. Agora tentam desesperadamente poupar um pouco para se safar. A única fonte de procura, neste momento, seriam as despesas do governo. Nem sequer têm de afectar o défice; podem ser feitas com empréstimos da Reserva Federal que envia os juros directamente ao Tesouro. Se alguém se preocupa com o défice que é, de facto, um tema menor, creio, esse é que é o problema importante.
Deveria haver um investimento massivo em infra-estruturas, deveria haver gastos com coisas simples como o meio ambiente. Deveríamos ter um programa substancial para reduzir a gravíssima ameaça do aquecimento global. Mas, infelizmente, isso é pouco provável com as novas legislaturas republicanas e os efeitos da propaganda massiva das grandes empresas para convencer as pessoas de que isso é um engano liberal. As últimas sondagens mostram que cerca de um terço dos estadunidenses acreditam no aquecimento global antropogénico – isto é, a contribuição humana para o aquecimento global. É quase um golpe mortal para a espécie. Se os EUA não fizerem nada, ninguém o fará.
AG: Que pensa da cimeira global sobre as mudanças climáticas que se celebra em Cancún?
NC: Bem, a cimeira de Copenhaga [Copenhaguen] foi um desastre, não aconteceu nada. Esta, de Cancún, fixou objectivos muito menores na esperança de conseguir alguma coisa. Mas suponhamos que atinjam todos os seus objectivos, o que é muito pouco provável; será uma gota de água no oceano. Há muitos outros problemas graves nesse campo.
Estamos agora numa situação em que os negacionistas das mudanças climáticas se estão a apoderar das comissões relevantes da Câmara de Representantes – ciência, tecnologia, etc. De facto, um deles disse recentemente: “Não temos que nos preocupar com essa questão porque Deus se encarregará de resolvê-la”. É incrível que isto esteja a acontecer no país mais rico e mais poderoso do mundo. É uma área importante em que deveria haver uma mudança substancial e melhoras. De contrário, não haverá muito mais de que falar dentro de uma ou duas gerações.
Outros consideram a simples reconstrução da economia deste país, para que as pessoas possam voltar ao trabalho, possam produzir coisas de que o país precisa, possam viver vidas decentes. Tudo isso pode ser feito. Os recursos existem, faltam as políticas.
AG: Noam, acerca do novo Congresso leio no The New Yorker: “Darrell Issa, um representante republicano da Califórnia, é um dos homens mais ricos do Congresso. Enriqueceu a vender alarmes para automóveis, o que é interessante porque foi acusado, por duas vezes, de roubar automóveis. Disse que teve uma ‘juventude pitoresca’. Agora que os republicanos estão prestes a tomar o controlo da Câmara, Issa prepara-se para chegar a presidente da Comissão de Supervisão. O lugar concede amplos poderes de intimação de comparência [comparecimento] e Issa já indicou como tenciona usá-los. Não lhe interessa – assegurou a um grupo de republicanos da Pensilvânia durante o verão – andar a cavar informações que possam embaraçar outros multimilionários: ‘Não vou usá-los para fazer os EUA empresariais viverem assustados’. Em vez disso, ele quer chegar onde se encontra a verdadeira maldade. Quer investigar os climatólogos. À cabeça da sua lista estão os pacientes e sofridos investigadores cujos correios electrónicos foram pirateados no ano passado, a partir da Universidade de East Anglia na Grã-Bretanha. Embora o trabalho [desses investigadores] tenha sido tema de três investigações separadas do ‘Climagate’ – tendo todas elas estabelecido que as alegações de manipulação de dados careciam de fundamento –, Issa não está satisfeito. Disse recentemente: ‘Vamos querer outra oportunidade’.”
NC: Pois. Isso faz parte da ofensiva massiva, basicamente uma ofensiva das grandes empresas. E não o esconderam. A Câmara do Comércio, o maior dos lóbis empresariais, o Instituto Estadunidense do Petróleo e outros disseram, de forma bastante pública, que estão a fazer uma “campanha educativa” massiva para convencer a população de que o aquecimento global não existe. E dá resultados. Vê-se até na forma como é apresentado nos médias [na mídia]: lê-se, digamos, numa discussão no New York Times sobre a mudança climática. Como têm de ser objectivos, apresentam os dois lados, onde, de um lado, estão 98% dos cientistas qualificados e, do outro, Issa e alguns cépticos da mudança climática. Mas, se repararem, falta aí uma terceira parte, isto é, uma quantidade muito substancial de destacados cientistas que afirmam que o consenso está longe de ser suficientemente alarmista e que, de facto, a situação é muito pior. Os EUA andam a arrastar este assunto há muito tempo, e agora está ainda pior.
Não há muitos dias apareceu um relatório sobre uma análise da produção de tecnologia verde. Dele resulta que a China vai à frente, seguida pela Alemanha, com a Espanha já muito adiantada e sendo os EUA um dos [países] mais atrasados. De facto, o investimento em tecnologia verde é maior na China – creio que duas vezes maior – do que nos EUA e na Europa juntos. São verdadeiras patologias sociais, exacerbadas pelas últimas eleições, mas é só um dos aspectos em que a política se move numa direcção totalmente errada. Há alternativas significativas, e se não forem levadas em conta pode ser um verdadeiro desastre. Pode não demorar muito.
AG: Gostava de mudar de tema por um momento, Noam Chomsky, e falar das eleições que acabam de ter lugar no Haiti.
NC: “Eleições” devia ser posto entre aspas. Se tivéssemos eleições nos EUA nas quais os partidos democrata e republicano fossem excluídos e os seus dirigentes políticos exilados na África do Sul, não seriam consideradas eleições sérias. Mas é exactamente o que aconteceu no Haiti. Os principais partidos políticos estão proibidos – como sabemos, os EUA e a França invadiram essencialmente o Haiti em 2004, sequestraram o presidente e mandaram-no para a África central. O seu partido continua proibido. A maioria dos analistas supõe que, como no passado, se lhe fosse permitido apresentar-se como candidato provavelmente ganharia a eleição. O ex-presidente Aristide é, segundo toda a informação disponível, a personalidade política mais popular do Haiti. Não só não lhe permitiram apresentar-se, essencialmente os EUA, como além disso não permitem que ele regresse ao seu país. Trataram de o manter fora do hemisfério. Não pode voltar ao Haiti mas, além disso, os EUA tratam de o manter fora do hemisfério. O que teve lugar foi uma espécie de farsa. Quero dizer, foi alguma coisa. Os haitianos tentam exprimir-se. E devíamos respeitar isso. Mas as principais alternativas que poderiam ter são excluídas pelas potências estrangeiras, o poder dos EUA e da França, que é o segundo dos torturadores históricos do Haiti.
AG: As Honduras. É interessante que, no meio destes telegramas que vieram à luz do dia com a publicação da WikiLeaks, se encontre o telegrama diplomático dos EUA de 2008 que diz exactamente aquilo que o governo dos EUA não se dispôs a dizer em público: que o golpe contra Manuel Zelaya foi totalmente ilegal. Como reage, Noam?
NC: Sim, é isso. É uma análise da embaixada em Tegucigalpa, [capital das] Honduras, onde dizem terem feito uma cuidadosa análise dos antecedentes legais e constitucionais e que conclui – pode ler o resumo na conclusão – que não há dúvidas de que o golpe foi ilegal e inconstitucional. O governo de Washington, como você disse, não se dispôs a dizê-lo. E de facto, depois de algumas dúvidas, Obama acabou, no essencial, por reconhecer a legitimidade do golpe. Apoiou a realização de eleições sob o regime golpista, que a maior parte da América Latina e da Europa se recusou a reconhecer. Mas os EUA reconheceram. De facto, o embaixador dos EUA acusou publicamente os latino-americanos que discordaram de estarem “seduzidos pelo realismo mágico”, como nos romances de Garcia Márquez ou assim, uma pura declaração de desdém. Que deveriam estar conosco e apoiar o golpe militar, que é ilegal e inconstitucional. E que tem muitas consequências. Uma delas é que preserva, para os EUA, uma grande base aérea, a base aérea Palmerola, uma das últimas que restam na América Latina. Os Estados Unidos foram expulsos de todas as outras.
AG: Tenho duas perguntas e só nos restam dois minutos. Uma sobre a Coreia do Norte. Os documentos da WikiLeaks mostram diplomatas chineses afirmando que os dirigentes chineses “têm cada vez mais dúvidas sobre a utilidade da vizinha Coreia do Norte” e apoiariam a reunificação. Que significa isto?
NC: Sou muito céptico acerca dessa declaração. Não há nenhum sinal de que a China esteja disposta e ter tropas dos EUA na sua fronteira, e essa seria uma consequência muito provável de uma Coreia reunificada. Eles [os chineses] têm objectado severamente contra as manobras navais dos EUA no Mar Amarelo, não longe da sua costa – a que chamam “águas económicas territoriais”. A última coisa que querem é a expansão das forças militares dos EUA próximo das suas fronteiras. Talvez pensem – não sei – que a Coreia do Norte simplesmente não é viável e que terá de ser derrubada, e é um problema difícil de muitos pontos de vista, mas isso eu não sei. Mas sou muito céptico acerca dessa revelação.
AG: Finalmente, Noam, acerca do seu mais recente livro Esperanças e Perspectivas. O que é que lhe dá esperanças?
NC: Bem, a parte das esperanças nesse livro tem a ver sobretudo com a América do Sul, onde realmente houve algumas mudanças significativas e espectaculares na última década. Pela primeira vez em 500 anos estão caminhando para a integração, que é um requisito prévio para a independência, e começaram a enfrentar alguns dos seus problemas internos realmente desesperados. Existe uma imensa disparidade entre ilhas de extrema riqueza e de pobreza massiva. Uma série de países, incluindo o mais destacado, o Brasil, deram passos nesse sentido. A Bolívia foi bastante espectacular, com a vitória da população indígena em importantes eleições democráticas. São factos importantes.
AG: Noam Chomsky, obrigado por ter estado conosco. Ah, e feliz aniversário!
NC: Muito obrigado.
Tradução do inglês: Passa Palavra
Original (em inglês), em DemocracyNow
Nota da editoria-geral: preservou-se a ortografia constante da fonte de onde se extraiu a entrevista.
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