Barack Obama parte amanhã para a América Latina, levando pouco mais que um sorriso de um milhão de dólares e a esperança de que ainda reste nos corações e mentes algum vestígio do encanto dos dias em que foi eleito nos EUA, eleição que os latino-americanos festejaram com real e profundo entusiasmo.
A viagem visa a mostrar que o governo Obama não se deixou impedir, por crises, domésticas e internacionais, de engajar-se proativamente com a região.
Mas a verdade é que, na América Latina, Obama disputará jogo de pega-pega, tentando segurar a China e impedir que continue a avançar por solos que já foram “o quintal” dos EUA; e tentará promover uma alternativa aos países chamados “da esquerda bad” (Venezuela, Nicarágua, Bolívia e às vezes o Equador e a Argentina) e reconquistar o Brasil para a “órbita” dos EUA.
Com sua economia de 6 trilhões de dólares, o Brasil ajudou a promover o que o presidente do Equador Rafael Correa chamou recentemente de “a segunda e definitiva independência” da América Latina, opondo-se a Washington em várias questões, da mudança climática ao comércio, da Palestina a Honduras e ao Irã.
Recapitulemos. Prometer atenção renovada à América Latina é coisa que candidatos prometem, tão certo como beijarão bebês fofos. Mesmo assim, houve quem confiasse que Obama seria diferente.
Quando Obama foi eleito, a América Latina era governada por presidentes que, cada um deles, representava uma diferente tradição progressista: a Teologia da Libertação (Lugo, do Paraguai), o sindicalismo (Lula, do Brasil), povos indígenas e o campesinato (Morales, da Bolívia), o feminismo (Bachelet, do Chile), a economia social-democrata (Correa, do Equador) e até o populismo militarista (Chavez, da Venezuela) – e esses líderes contavam com que Obama se reuniria a eles no Pantheon, vendo-o como uma culminação das lutas pelos direitos civis nos EUA.
(...) Mas, como Obama aprendeu bem depressa, os obstáculos a uma diplomacia hemisférica efetiva nunca estiveram em alguma “esquerda bad” na América Latina e sempre estiveram lá mesmo, nos EUA: no lobby anti-Castro, na agroindústria, no fundamentalismo racista anti-latinos, e, claro, também no Departamento de Estado e no Departamento de Comércio, todos lotados de remanescentes dos governos Clinton e Bush, ativos para impedir qualquer tipo de avanço progressista – nas questões dos migrantes, nas relações com Cuba, no contrabando de armas para o México, nas tarifas (a tarifa de 54 cents cobrada em cada galão do etanol importado do Brasil foi renovada – como se os EUA fossem inimigos figadais de qualquer “livre comércio”) e na resistência às políticas de inclusão e redução da miséria.
Resultado da ação dessas forças, nos EUA, Obama sucumbiu à inércia, levou adiante uma guerra desastrada às drogas e tocou sua agenda econômica como se 2008 nos EUA (ou 2002 na Argentina, o pior colapso econômico jamais registrado na história) não tivessem acontecido.
O roteiro de Obama – Brasil, Chile e El Salvador – é instrutivo. Se Washington ainda sonha com salvar sua diplomacia para o hemisfério, depende absolutamente da ajuda do Brasil – com sua economia diversificada e gigantescas reservas de petróleo (que não param de aumentar com novas jazidas descobertas quase diariamente). E a decisão de visitar também Chile e El Salvador tem de ser interpretada como alguma espécie de aposta, para mostrar que os EUA podem trabalhar com governos ao longo de todo o espectro político... e tentativa para manter esse espectro bem limitado: no máximo, uma direita reformada (à moda do Chile de Sebastián Piñera) e uma “esquerda” desdentada, não ameaçadora, absolutamente contida (à moda de El Salvador de Mauricio Funes).
Nos próximos dias, esse blog acompanhará o tour de Obama pela América Latina.
Bom sinal de que a viagem não passa de tour de celebridade midiática, em troca de ganhar prestígio político, seria que Obama, no Brasil, anunciasse que apoia o esforço do país para alcançar assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Seria sinal de que Washington, afinal, aceitou a existência de uma nova América Latina; e de que os EUA reconhecem que, se querem mesmo conter a hemorragia fatal que mina a influência norte-americana no continente, é indispensável que os EUA reconheçam o Brasil como parceiro – e parem de ter chiliques ‘diplomáticos’ cada vez que Brasília aponta ao mundo a fenda de proporções geológicas que separa a retórica e a ação dos EUA (por exemplo, se alguém quiser verificar as dimensões da fenda, no caso de Honduras).
Vamos ver. Mas nada garante que Obama seja suficientemente hábil para, ou que deseje suficientemente, superar as dificuldades atuais. A última coisa que muitos em Foggy Bottom ou no Pentágono desejam ver é o Brasil com destaque ainda maior do que o que já alcançou por seus próprios meios, como força capaz de conduzir o que, antigamente, Washington conhecia como Terceiro Mundo.
Recentemente, em conferência de imprensa em Pequim – que destacou a importância do novo eixo Sul-Sul que se vai constituindo –, o ministro de Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, reiterou a oposição de seu país à militarização da crise da Líbia, alinhando-se, ao lado de Venezuela e África do Sul, na conclamação para que se busque solução negociada, contra qualquer tipo de “no-fly zone” a ser imposta à Líbia, solução ilegal, oposta ao que determina a Carta das Nações Unidas. Dias depois, o Brasil reafirmou essa posição, em declaração conjunta com Índia e África do Sul.
E só por um triz a viagem do Obama não foi cancelada: bastaria que os Republicanos cumprissem as ameaças que haviam feito, de “paralisar o governo”. Imaginem se, algum dia, algum Congresso pensaria em proibir Ronald Reagan de sair em passeio turístico pela América Latina, a bordo de seu Big Bird. Se tivesse acontecido, Washington poderia jogar a chave da região nas mãos da China e enfiar, de vez, a violinha no saco.
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