sexta-feira, 25 de março de 2011

STF e a Lei da Ficha Limpa: “Cortes não reúnem divindades”, afirma Roberto Romano

Fábio Lucas Editorialista do JC O adiamento da validade da Lei da Ficha Limpa causou frustração entre os que esperavam maior sintonia entre a iniciativa popular e o STF. Para o filósofo e professor Roberto Romano, o julgamento estabeleceu uma hierarquia entre as leis da Constituição. Segundo ele, em breve saberemos se a decisão “seguiu o caminho da salvação republicana ou da perdição”.

JC – Com o adiamento da validade da lei para 2012, o clamor ético foi vencido pela técnica processual?


ROBERTO ROMANO – Em termos. Se o clamor ético não tem força para superar a decisão do STF e seguir na luta pela transparência e responsabilidade republicana, ele não possui maior amplitude na cena brasileira. Creio, no entanto, que o julgamento da corte será um incentivo a mais para que seja continuado o movimento.

JC – Qual deve ser o próximo passo?

ROMANO – O primeiro é vigiar os que foram barrados no exercício do cargo. Quem chegou aos desmandos que eles cometeram no passado, em breve repetirá o procedimento de usar o público em benefício próprio. A cada desmando novo, a denúncia ajudará a mostrar que a decisão dos juízes não foi perfeita. Outro elemento da pauta ética e republicana é exigir o fim do foro privilegiado, uma teratologia jurídica nacional, aceita pelo STF (pois aquela corte está julgando processos cuja marca é o referido privilégio). A Constituição manda que o Estado seja uma república. E numa república não existem privilégios. Enquanto existir foro especial, o Brasil será presa dos improbos. Aí, nenhuma lei de ficha limpa poderá atenuar os nossos males.

JC – O argumento de que a lei não poderia interferir na eleição do mesmo ano é aceitável como barreira ao casuísmo. Mas é possível chamar a Ficha Limpa de casuísmo?

ROMANO – A imprudência cometida antes do julgamento do STF reside no fato de aplicar a lei sem refletir sobre o artigo determinado da Constituição. Ela deve-se a juízes da alta corte eleitoral do País. Aqueles magistrados escolheram alguns elementos do artigo 37 do Capítulo VII da Carta. Deixaram de levar em conta um deles, o da legalidade. O julgamento do STF escolheu aquele item. O que nos leva à constatação inquietante: o julgamento é feito de maneira volitiva, não só racional. O julgamento estabeleceu uma hierarquia entre os mandamentos da Constituição. Até que ponto tal hierarquia salva ou lesa a rés pública, é o que veremos.

JC – O STF sai arranhado ou fortalecido dessa votação?

ROMANO – Cortes Supremas não reúnem divindades. São pessoas humanas, com falhas, que decidem em seu âmbito. A Suprema Corte alemã, por exemplo, nos lembra Eric Voegelin (no livro Hitler e os Alemães), na pessoa de seu presidente, aceitou leis secretas dos nazistas, que ordenavam o massacre dos deficientes físicos e mentais. A Corte Suprema dos Estados Unidos, no julgamento de Buck versus Bell, decidiu pela esterilização da jovem Carrie Buck, abençoando os procedimentos “eugênicos” que, vindos da Inglaterra para os EUA, voltou para a Europa e culminou no Holocausto. No Brasil, no governo Getúlio Vargas, foi criado o Tribunal de Segurança Nacional, contra os preceitos da Constituição da época que dizia: “Não haverá foro privilegiado, nem tribunal de exceção”. Pois bem, a Corte Suprema, por unanimidade de votos, declarou aquele Tribunal perfeito segundo a Constituição. A teratologia só foi extinta em 16/11/1945. Aquele “tribunal”, quando houve empate no caso de João Mangabeira, desempatou contra o réu... No caso da decisão atual, como disse, em pouco tempo saberemos se o julgamento seguiu o caminho da salvação republicana, ou da perdição. Manda a prudência esperar, mas alerta.

JC – A volta dos fichas-sujas ao Congresso não deveria ser comemorada como vitória da lei – pela observação da Constituição. A Constituição deve ser reparada, ou é da sua interpretação que se abusa?

ROMANO – “Summum jus, summa injuria” [Nota da editoria-geral do Terra Brasilis: Suma justiça, sua injúria. Exercício do direito em excesso gera injúria excessiva.], diz o adágio latino. É possível dizer que a estrita legalidade, no caso, pode arruinar a confiança do cidadão na Justiça. Os juristas que desprezam os “leigos” deveriam assumir a prudência como diretriz, sobretudo quando se trata de escolher entre determinações constitucionais que, no caso concreto, entram em conflito. Espero, sinceramente, que os frutos da decisão não contribuam para a piora da ordem política.

JC – A honestidade e correção dos homens públicos estão na Constituição?

ROMANO – Com todas as letras: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados e Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência...” (Capítulo VI, artigo 37). Os magistrados do STF, por maioria, escolheram um dos itens referidos, o da legalidade, atenuando os demais. Mas sigamos, pois a república e a democracia são feitas de idas e vindas, avanços e retrocessos. 

Fonte: Jornal do Commercio [25/03/2011]

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