quinta-feira, 28 de julho de 2011

O que é Estado Laico?

A Laicidade é a forma institucional que toma nas sociedades democráticas a relação política entre o cidadão e o Estado, e entre os próprios cidadãos. No início, onde esse princípio foi aplicado, a Laicidade permitiu instaurar a separação da sociedade civil e das religiões, não exercendo o Estado qualquer poder religioso e as igrejas qualquer poder político.
Para garantir simultâneamente a liberdade de todos e a liberdade de cada um, a Laicidade distingue e separa o domínio público, onde se exerce a cidadania, e o domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção) e onde coexistem as diferenças (biológicas, sociais, culturais). Pertencendo a todos, o espaço público é indivísivel: nenhum cidadão ou grupo de cidadãos deve impôr as suas convicções aos outros. Simétricamente, o Estado laico proíbe-se de intervir nas formas de organização colectivas (partidos, igrejas, associações etc.) às quais qualquer cidadão pode aderir e que relevam do direito privado.
A Laicidade garante a todo o indivíduo o direito de adoptar uma convicção, de mudar de convicção, e de não adoptar nenhuma.
A Laicidade do Estado não é portanto uma convicção entre outras, mas a condição primeira da coexistência entre todas as convicções no espaço público.
Todavia, nenhuma liberdade sendo absoluta e todo o direito supondo deveres, os cidadãos permanecem submetidos às leis que se deram a si próprios.

A LAICIDADE É ANTI-RELIGIOSA?

De modo algum. Pode ser-se crente e laico, como se pode ser socialista ou liberal e democrata. A Laicidade não é irreligião: ela oferece mesmo a melhor protecção às confissões minoritárias, pois nenhum grupo social pode ser discriminado.
A existência ou a inexistência de um deus são duas hipóteses igualmente inverificáveis do ponto de vista da razão, e igualmente inúteis para a gestão do interesse público. Indiferente e incompetente em matéria de doutrinas e crenças, o Estado laico só se ocupa do que releva do interesse público.

A LAICIDADE É ANTICLERICAL?

Por princípio, a Laicidade garante a liberdade de crença e de culto dentro dos limites das leis comuns e da ordem pública. Entretanto, a Laicidade opõe-se ao clericalismo logo que este preconiza discriminações ou tenta apropriar-se da totalidade ou de uma parte do espaço público.
A Laicidade opõe-se também ao sistema de “igrejas reconhecidas” [1] em vigor na maior parte dos cantões suíços, e que confere às confissões maioritárias privilégios escolares e fiscais discriminatórios.

A LAICIDADE OPÕE-SE À LIBERDADE DE EXPRESSÃO?

Antes pelo contrário: a liberdade de expressão não é apenas uma condição necessária da Laicidade, é a sua origem. Os inventores da separação das igrejas e do Estado contestaram as religiões de Estado, muitas vezes protestantes, e foram perseguidos pelas suas ideias…
O que ameaça a liberdade de expressão é portanto o direito que se arrogam certos grupos de censurar toda a opinião diferente a coberto de uma dignidade ferida.
A liberdade de expressão não deve conhecer outros limites além dos de ordem pública e de atentado aos bons costumes. Só devem ser proscritos e perseguidos em justiça os insultos, as ameaças e as difamações contra indivíduos ou pessoas morais.

O QUE É A LAICIDADE «PLURAL» OU «ABERTA»?

Um slogan vazio de sentido e um absurdo conceptual. Confundindo pluralismo e pluralidade, pretendem-se conceder direitos específicos a cada grupo que reclama uma identidade específica.
A expressão «lacidade plural» visa diabolizar a Laicidade apresentando-a como dogmática. São os integristas e os relativistas quem utiliza esse termo. Ora são eles quem representa um risco real para a diversidade de ideias e de pertenças: os primeiros porque estão certos de possuir uma verdade incontestável, e querem impô-la pela opressão; os segundos porque acham todas as opiniões contestáveis, e portanto permutáveis. Ora, toda a sociedade necessita de um mínimo de princípios prioritários.
Racionalmente, não seria possível defender simultaneamente um espaço público comum e conferir isenções de direitos a este ou aquele grupo de cidadãos. Nem discriminações, nem privilégios, esse é o lema de qualquer Estado garantindo a todos os cidadãos a igualdade de tratamento.

E A TOLERÂNCIA?

A tolerância pressupõe sempre que alguém tolera e que alguém é tolerado: em geral, uma maioria tolera as minorias. A Laicidade faz melhor: as leis que o povo se confere democraticamente são válidas para todos os cidadãos. Sendo a cidadania cega às diferenças, uma minoria não pode ser tratada diferentemente da maioria.

A LAICIDADE OPÕE-SE AO MULTICULTURALISMO?

Não quando ele é de facto, mas sim quando é de Direito. A Laicidade defende a multiplicidade das culturas contra as tentativas de uniformização do neoliberalismo, por exemplo. Enquanto facto, o multiculturalismo [2] parece-nos uma oportunidade.
Pelo contrário, a teoria multiculturalista leva à destruição das sociedades democráticas, porque, partindo do direito à diferença, que se aceita, visa defender diferenças de direitos incompatíveis com a igualdade, e que levam ao comunitarismo, quer dizer, à pretensão de certos grupos de escapar às leis comuns.
O multiculturalismo é justamente a consequência de um fracasso na definição de um espaço comum que ultrapasse as diferenças.
A vontade dos multiculturalistas de procurar a igualdade é legítima, mas os meios que se propõem são contraproducentes: a discriminação positiva, que tende a restabelecer a igualdade compensando as desigualdades culturais, leva a efeitos perversos que reforçam a exclusão em vez de a atenuar. O racismo das minorias contra a maioria ou contra as outras minorias leva à guerra de guetos.
Toda a discriminação é por definição negativa.
Para além das diferenças, nós acreditamos na unidade fundamental do género humano. Ver em cada homem um outro eu, eis aí todo o nosso programa.
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(*) Ricardo Alves é presidente da Associação Cívica República e Laicidade, de Portugal.
Notas do Bule:
[1] Igrejas estabelecidas são aquelas reconhecidas como entidades de direito público. Os fiéis destas igrejas estão sujeitos ao “imposto religioso”, uma quantia que o Estado recolhe dos cidadãos e repassa para a Igreja a que pertence cada contribuinte. O cantão (estado) da Basiléia, cobra o maior imposto religioso da Suíça: 8% da renda.
[2] No multiculturalismo, existe a convivência em um país, região ou local de diferentes culturas e tradições. Há uma mescla de culturas, de visões de vida e valores. O multiculturalismo aceita diversos pensamentos sobre um mesmo tema, abolindo o pensamento único. Há o diálogo entre culturas diversas para a convivência pacífica e com resultados positivos a ambas. O problema reside no fato de que o multiculturalismo pode ser abordado de forma relativista e de forma universalista.
A abordagem relativista estabelece critérios mínimos para o diálogo entre culturas, isto é, tudo é aceito e tudo é correto. O julgamento interno é mais importante do que o julgamento externo (da sociedade internacional). Nessa concepção do multiculturalismo, não se pode falar em direitos humanos universais, pois cada cultura é livre para estabelecer seus próprios valores e direitos. Não existe a possibilidade de proteção internacional dos direitos humanos nessa visão.
A abordagem universalista permite a propagação e convívio de diferentes idéias, desde que esteja estabelecido um denominador mínimo, comum entre as partes, para o início do diálogo (valores universais). Esse mínimo a ser respeitado são os direitos humanos
Marcelo Druyan
 

Fonte: Bule Voador

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