sábado, 9 de julho de 2011

Reincidente na exploração de trabalho escravo é preso

Parte dos libertados dormia dentro de fornos. Flagrado anteriormente na prática do mesmo tipo de crime, produtor de carvão vegetal do Norte de Goiás arregimentava preferencialmente pessoas com pendências perante a Justiça

Por Bianca Pyl

Uma ação de combate ao trabalho escravo em carvoarias de Goiás resultou na prisão de Antônio Adélio Tavares da Silva, reincidente no crime.

"É a primeira vez que um empregador é preso em flagrante, em nosso estado, por submeter trabalhadores à condição análoga à de escravo", confirmou Roberto Mendes, auditor que coordenou a fiscalização pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO). Trabalhadores eram submetidos a jornadas de trabalho diárias de até 20h e havia até quem passava noites dormindo no interior dos fornos de carvão vegetal.

Antônio está preso desde 17 de junho. A Repórter Brasil entrou em contato com a delegacia de São Miguel do Araguaia (GO) e foi informada que o produtor rural continua preso. Ele já responde a uma ação criminal na 5ª Vara Federal de Goiânia (GO), pelo mesmo crime de redução a condição análoga à de escravo. A ação é resultado de uma fiscalização do grupo móvel que libertou 19 pessoas que também produziam carvão para Antônio, em 2005.

Há seis anos, o grupo móvel de fiscalização libertou 19 empregados de carvoaria de Antônio, que funcionava na Fazenda Califórnia, em São Miguel do Araguaia (GO). Em função do ocorrido, o proprietário da área, Moreira Osvando, acabou sendo inserido na "lista suja" do trabalho escravo no ano de 2007, mas teve o nome retirado do cadastro por força de liminar judicial. "Antônio atua há mais de 10 anos na região e já foi atuado por várias vezes", relata Roberto.

Nesta operação mais recente, realizada entre os últimos dias 15 e 24 de junho, 25 pessoas foram libertadas de condições de trabalho escravo em três carvoarias espalhadas pelo Norte de Goiás. Ao todo, sete carvoarias foram fiscalizadas. Todas foram interditadas por conta de irregularidades. Os estabelecimentos inspecionados ficam nos municípios de São Miguel do Araguaia (GO), Crixás (GO), Mara Rosa (GO), Novo Planalto (GO) e Nova Crixás (GO).

Além dos representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), participaram da fiscalização o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Estadual (MPE), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de integrantes da Polícia Civil do Estado de Goiás, que foi chamada para efetuar a prisão em flagrante do responsável.

De acordo com Roberto, a caracterização do crime de trabalho escravo nas três carvoarias se deu pela condição degradante - dos alojamentos e do meio ambiente de trabalho - pela jornada exaustiva.

Apesar de já ter sido flagrado anteriormente, Antônio foi pessoalmente até sua cidade natal, em Abaeté (MG), para aliciar 16 trabalhadores encontrados em carvoarias instaladas em duas diferentes propriedades: a Fazenda Araponga (propriedade de Ademir Furuya, onde foram libertadas 11 pessoas), em São Miguel do Araguaia (GO); e a Fazenda Rancharia (que pertence à Jairo Luiz Alves, onde eram escravizados cinco trabalhadores), em Novo Planalto (GO). Esta última havia sido interditada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e, mesmo assim, estava funcionando normalmente. Além do descumprimento da interdição por questões ambientais, o empregador também acabou violando Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que já tinha assinado junto ao MPT por conta de diversas irregularidades trabalhistas verificadas em inspeções passadas.

"Os trabalhadores arregimentados eram preferencialmente pessoas que respondem a inquéritos policiais ou criminais, ou mesmo já condenadas", conta Roberto. Na avaliação dele, isso era feito de forma intencional para que o produtor pudesse aproveitar dessa condição de forma direta (com ameaças de denuncia à Justiça) ou de forma indireta (na condição fragilizada de réus ou até de foragidos, os trabalhadores aceitavam quaisquer condições para não ter que voltar para as suas cidades de origem).

O trabalhador que denunciou o empregador na Promotoria de Justiça de São Miguel do Araguaia (GO), por exemplo, acabou sendo preso após relatar as condições de trabalho que era obrigado a enfrentar. Outros seis empregados fugiram durante a operação com medo da prisão. De acordo com Roberto, da SRTE/GO, as verbas rescisórias desses empregados foram devidamente depositadas na Vara da Justiça do Trabalho de Porangatu (GO) e serão liberadas mediante alvará judicial.

Mesmo preso, o empregador ainda tentou dificultar a operação, ordenando que os trabalhadores se retirassem das carvoarias e esperassem na Fazenda Paraíso, em Sandolândia (TO), propriedade que pertence ao produtor. A fiscalização se deslocou até o local e encontrou mais quatro pessoas que confirmaram que estavam trabalhando na carvoaria da Fazenda Araponga e chegaram ao local por ordem de Antônio, para tentar fugir da fiscalização.

Condições 

"É, sem dúvida, a pior situação que eu já encontrei em vários anos de trabalho atuando nesse tipo de ação de combate ao trabalho escravo", testemunha Roberto. A situação mais grave era a de quatro trabalhadores que realizavam o carregamento do caminhão de carvão vegetal. Nos depoimentos, eles disseram que era comum trabalhar 20h consecutivas (mais que o dobro das 8h diárias regulamentares), descansar por apenas 4h e retornar ao trabalho para uma nova jornada de mais 14h ou 15h. Eles não tinham descanso semanal remunerado e o ritmo puxado era mantido de segunda a segunda.

Algumas vítimas chegavam a dormir em cima de
sacos de carvão, dentro dos fornos (SRTE/GO)
Quando não conseguiam concluir o carregamento do caminhão em um único dia ou quando carregavam dois ou mais caminhões em sequência, esses trabalhadores dormiam dentro dos fornos, deitados diretamente sobre uma "camada" de sacos de carvão que forrava o chão.

"É uma total afronta à dignidade humana e uma situação de risco gravíssimo. O ambiente do interior dos fornos constitui-se em espaço confinado, além do risco decorrente da fuligem de carvão", aponta Roberto. Um dos trabalhadores disse aos auditores fiscais que, para tentar minimizar o frio durante a madrugada, eles se valiam das lonas disponíveis que eram utilizadas normalmente para cobrir o carvão vegetal. O empregador não fornecia equipamentos de proteção individual (EPIs), nem mesmo a máscara respiratória utilizada para proteger o pulmão da fuligem. Os carbonizadores, ensacadores, forneiros e carregadores de carvão laboravam apenas de bermudas ou com roupa adicional rasgada. "Isso acentuava ainda mais os riscos de acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais", explica o auditor fiscal que coordenou a ação.

A alimentação era escassa e não atendia às necessidades mínimas de nutrição para quem realiza tarefas como a dos carvoeiros, que exigem muito esforço físico. Pela manhã, por exeemplo, se resumia a café preto. Alguns empregados compravam bolachas para complementar suas refeições do empregador, mediante desconto na folha de pagamento. Proveniente de cisterna recém-aberta, a água consumida tinha aparência turva e barrenta.

O alojamento era um barraco. As camas eram improvisadas com tábuas e tijolos e os colchões estavam muito sujos. A instalação sanitária à disposição não tinha água corrente e, portanto, não era utilizada. Os trabalhadores acabavam utilizando o mato mesmo como banheiro.

Os salários eram pagos com atraso e o valor empre era diferente do prometido pelo empregador. Os fiscais comprovaram que algumas Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPSs) foram retidas.

Arrendamento

As outras nove vítimas foram libertadas na Fazenda Dois Córregos, em Nova Crixás (GO). A propriedade pertence a Inácio Pereira Neves, mas a carvoaria era de Francisco Brás Cavalcante. A situação do meio ambiente de trabalho também era degradante: os trabalhadores não tinham acesso à água potável, estavam alojados em barracos precários e não recebiam EPIs.

Em todas as três fazendas, foram celebrados contratos de arrendamento entre o produtores de carvão e os proprietários dos imóveis rurais. Os donos disponibilizaram as terras para o desmatamento da mata nativa e retirada da madeira, recebendo o benefício da terra limpa para formação de pastagens para pecuária, enquanto os arrendatários (produtores de carvão) ficaram com o direito de explorar o material lenhoso disponível.

Na avaliação da equipe de fiscalização, o contrato de arrendamento não passa de um subterfúgio para fraudar direitos trabalhistas, pois representa terceirização de atividade-fim do imóvel rural, já que o fazendeiro recebe a terra desmatada para pastagem. Os proprietários das três fazendas flagradas foram autuados e devem arcar com as verbas rescisórias das vítimas.

Jairo Luiz Alves e Ademir Furuya concordaram em fazer os pagamentos. O valor total das verbas rescisórias superou R$ 50 mil. Eles também firmaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT.

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