Em 2006, diplomacia americana suspeitou de irregularidades em convênios da UNESCO com ministérios do governo brasileiro. Por Julio Cruz Neto, especial para a Pública.
A sede da UNESCO em Brasília foi tema de vários telegramas da diplomacia americana, como mostram documentos vazados pelo Wikileaks e divulgados pela agência Pública, que até hoje permaneciam inéditos na imprensa brasileira.
São diversas denúncias que giram em torno de uso indevido de verbas, e envolveram ingredientes de peso, como a relação bilateral Brasil-EUA, os empregos de muitos funcionários da Esplanada dos Ministérios e a imagem do órgão da ONU perante a justiça e a sociedade brasileira.
A UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) tem sede em Paris.
Foi na embaixada dos Estados Unidos na capital francesa que o assunto circulou durante o ano de 2006. O primeiro dos seis telegramas a que a Pública teve acesso é de 4 de abril e diz: “Comitê executivo da UNESCO considera plano do diretor-geral para ‘reorientação’ do escritório problemático de Brasília”.
A diplomacia americana viu com gravidade as denúncias de que através de convênios com os ministérios brasileiros, a UNESCO estava subcontratando trabalhadores para esses ministérios – sem concurso público ou prestação de contas. Os americanos temiam que isso pudesse representar um risco legal, já que corria uma ação civil por improbidade administrativa contra a UNESCO, por supostamente causar danos aos cofres públicos brasileiros.
Unescoduto
No decorrer daquele ano, outros telegramas revelaram detalhes de supostas irregularidades.
“Começando em 1998, e acentuadamente a partir de 2003, o Ministério da Saúde driblou restrições para contratação de pessoal por meio de parcerias com a UNESCO e o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), algo que está fora da alçada da UNESCO”, informa um documento de dezembro de 2006.
Funcionários dos ministérios eram pagos por estes órgãos para, em tese, desenvolver estudos, análises de conjuntura e produzir documentos chamados de “produtos” no jargão da Esplanada. Embora entregassem esses produtos ao fim do contrato de trabalho, na prática, eles trabalhavam nos ministérios. Fontes ouvidas pela Pública confirmam que o esquema foi utilizado em uma variedade de ministérios – em off, disseram que continua sendo usado até hoje.
Os números revelados pelos documentos do WikiLeaks impressionam. Segundo a chancelaria americana em Paris, 70% dos profissionais do Ministério da Saúde eram remunerados desta forma.
Era preciso encontrar uma saída, mas os documentos deixam claro que também havia preocupação em não contrariar o governo brasileiro, cujos recursos são importantes para a “resource-poor UNESCO”, como define a embaixada em Paris, referindo-se à falta de dinheiro da entidade. Tais recursos representavam, segundo um documento, uma “enorme tentação” e poderiam fazer a UNESCO relutar em tomar medidas imediatas para suspender o programa apesar das irregularidades.
Os documentos também revelam ponderações que parecem ter arrefecido o ímpeto de trazer as denúncias a público. Uma delas é que a justiça brasileira – não fica claro se por iniciativa do STF ou do STJ – teria suspendido uma ação civil em curso contra funcionários graduados de agências públicas, entre eles o chefe do escritório da UNESCO em Brasília, por “supostamente causar prejuízos significativos aos cofres públicos brasileiros”. Motivo: a entidade poderia ter direito a imunidade judicial.
Em telegrama de setembro, comentava-se que, segundo o governo brasileiro, o tema havia sido suficientemente investigado e era hora de tirá-lo da agenda. Os EUA discordavam, mas enfrentavam “escolhas difíceis” sobre como se posicionar adequadamente no âmbito do comitê executivo da UNESCO, do qual são membros, levando em conta as relações bilaterais.
“Conflito de interesses”
Adicionalmente, menciona-se um “conflito de interesses” por parte do brasileiro Márcio Barbosa, então número 2 da UNESCO. Ele teria se negado a tomar decisões “de alto nível” referentes à sede em Brasília e reduzido o percentual cobrado por serviços, causando uma perda superior a 600 mil dólares para a entidade.
O nome de Barbosa volta a aparecer num documento de outubro, que contém o seguinte comentário: “O novo auditor externo da UNESCO, Phillipe Seguin, é francês. No entanto, não sabemos ainda quão cooperativo ele poderá ser, dado a sensibilidade política da investigação e o fato de que o vice-diretor-geral da UNESCO é brasileiro”.
Este documento traz um fato novo: a missão diplomática americana na capital francesa havia recebido “discretamente” a cópia de uma carta endereçada ao então diretor-geral da UNESCO, Koichiro Matsuura, que comandou a entidade de 1999 a 2009. Assinada por dois promotores federais brasileiros, informava que a investigação avançava rapidamente e havia se transformado de ação civil em penal.
Por outro lado, o mesmo documento menciona “dificuldades enfrentadas pelos promotores na investigação. Não está claro se esta reclamação é uma alusão à falta de cooperação ou, pior, obstrução que poderia ser atribuída à representação em Brasília”.
Panos quentes
Os telegramas trazem à tona detalhes desse imbróglio diplomático, que parece ter ficado mais picante quando a delegação brasileira tentou (em vão) convencer os americanos (em Paris) a esquecer essa história de irregularidade em Brasília.
O primeiro documento com tal informação é datado de 15 de setembro, duas semanas antes do primeiro turno das eleições gerais, em que Luiz Inácio Lula da Silva seria reeleito.
“Há coisas mais importantes a serem discutidas e, adicionalmente, as investigações, que entram quase automaticamente na pauta das reuniões do Comitê Executivo, não revelaram nada relevante até o momento”, argumentou ao pessoal da embaixada dos EUA em Paris o embaixador brasileiro, Luiz Filipe de Macedo Soares.
O embaixador disse que a “inquisição” sobre a representação em Brasília estava gerando um clima de “ansiedade geral”, dando a entender que havia algo errado, o que não era o caso. Argumentou que levantar essa poeira arranha a imagem da UNESCO no Brasil e espalha “pequenas doses de veneno” que danificam a reputação e credibilidade de instituições públicas e privadas, referindo-se ao Ministério da Educação e à TV Globo, conclui a embaixada em Paris.
A Globo é mencionada por causa do Criança Esperança, ONG para a qual emissora teria arrecadado cerca de 40 milhões de dólares desde 1986, ou seja, em 20 anos. A UNESCO teria ficado com 10% desse montante, por conta de uma “taxa de serviço”.
Os telegramas não alegam irregularidade nisso. Apenas citam montantes, como este outro: “É válido notar que um terço da verba extra-orçamentária da UNESCO (cerca de 124 milhões de dólares) passa pelos cofres do escritório brasileiro”.
A visita do embaixador brasileiro pode ter sido um tiro pela culatra, conclui a embaixada. “Em vez da receptividade esperada por ele, seus comentários nos deram mais moviots para questionar a posição do diretor-geral sobre a situação no Brasil”.
Um documento do início daquele ano revela que a chefia da UNESCO falava em ponderação ao debater os assuntos brasilienses. Um representante do diretor-geral defendeu uma “estratégia de transição para permitir uma transferência progressiva das atividades dos projetos em questão”, a fim de “não interromper projetos de impacto nacional”.
Não se pode afirmar, no entanto, que o “tiro pela culatra” se refere especificamente a isso. Nos documentos vazados pelo Wikileaks sobre esse assunto, há um vácuo entre abril e setembro.
O que procuramos fazer aqui foi identificar os pontos mais relevantes dos telegramas e entender o que se passava. Uma coisa é certa. Os americanos em Paris estavam impressionados com os relatos sobre irregularidades em Brasília e a cúpula da UNESCO estava preocupada em não criar embaraços com o governo brasileiro.
Viagens e suspeitas
O governo brasileiro, pelo jeito, jogou para ganhar. A ponto de John Parsons, diretor do que seria a corregedoria interna da UNESCO, ter ameaçado abandonar seu posto tamanha a campanha de difamação promovida contra ele, segundo documento de 26 de setembro de 2006.
Outra atitude de Brasília foi vetar o nome do americano Richard Goughnour, indicado por Matsuura, para assumir o escritório na capital federal. Segundo a embaixada em Paris, foi uma medida “muito inusitada”.
Inusitados também são os números referentes a missões internacionais do escritório da UNESCO em Brasília. Em menos de um ano, o escritório teria empenhado 60 milhões de dólares em 30 mil viagens – o que daria cerca de 80 por dia – e cancelado nada menos que mil viagens por mês.
A agência responsável teria sido escolhida sem licitação e pedidos de abertura de concorrência estariam sendo ignorados desde 2001, apesar de recomendações “insistentes” do auditor. Parsons aí levantou a hipótese de “lavagem de dinheiro”, segundo um telegrama.
O assunto começou a ganhar corpo com o telegrama de 26 de setembro de 2006, intitulado “Novas informações alarmantes sobre a sede da UNESCO em Brasília”, que cita John Parsons, “em off”, como fonte das informações e pede que seu nome seja protegido. O nome de Parsons também aparece no documento que informa sobre a ação penal em curso. Foi ele quem entregou à Embaixada dos EUA em Paris a cópia da carta endereçada ao diretor-geral, “demonstrando mais uma vez disposição de se arriscar para trabalhar próximo a nós (fecha aspas).
Agora as aflições do auditor não são mais segredo e tudo que a diplomacia americana conjecturou sobre esse tema está “em on”, aqui na Pública, graças ao Wikileaks.
A representação da UNESCO em Brasília disse que não se manifesta sobre documentos não oficiais e que todas as suas ações no Brasil estão amparadas na lesgislação. A UNESCO se recusa a informar quanto recebe do governo.
Os documentos são parte de 2.500 relatórios diplomáticos referentes ao Brasil ainda inéditos, que foram analisados por 15 jornalistas independentes e estão sendo publicados nesta semana pela agência Pública.
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