sábado, 13 de agosto de 2011

Acertos e abusos contra a corrupção

Por Pedro Estevam Serrano*

Casos de corrupção, desmandos e malversações de dinheiro público, como o ocorrente no Ministério do Turismo, sempre despertam o repúdio e a indignação públicas. Não é para menos. ONG´s de fachada, contratos fraudulentos, emendas orçamentárias de encomenda e outras ilicitudes graves são condutas não apenas reprováveis no campo ético, mas crimes graves que merecem a devida punição com o rigor que a universalidade da aplicação da lei exige, sejam quem forem os culpados.

Mas não posso deixar de manifestar que, face a minha vivência profissional, quando vejo notícias de vasta repercussão com prisão de muitas pessoas, tremo internamente porque sei que, se o grosso das imputações são verdadeiras,  também haverá inocentes ou pessoas com culpa menos grave sendo envolvidas e tendo a vida jogada para debaixo do tapete, numa sociedade em que imagem vale mais que realidade.

Por conta de uma visão  equivocadamente draconiana em relação a conduta dos agentes públicos, conseqüência  natural dos desmandos do fisiologismo e corrupção de nossas elites no exercício do poder estatal em nossa história, qualquer imputação feita a um grupo de servidores públicos já é tida como verdadeira com relação a cada um dos integrantes deste mesmo grupo, independentemente da devida individualização das condutas. Ou seja, em geral, o crime imputado ocorreu, mas alguns inocentes pagam indevidamente por ele, por conta de fazer número para as notícias ou como forma de pressão para obtenção de testemunhos, ou ainda como forma de distribuir o custo publico das prisões por mais de um partido ou segmento político.

Este aspecto me parece relevantíssimo. O sistema jurídico acaba não realizando seu fim maior em relação a corrupção que seria separar o joio do trigo. Colocar na cadeia quem realmente merece estar lá. Serve à lógica noticiosa em detrimento da lógica binária do licito/ilícito que deveria nortear a pratica e o discurso jurídico.

E este “default’ do sistema vem em favor de apenas um setor da administração pública: o setor corrupto. O fato de haver pessoas inocentes presas em meio a redes de corrupção serve como escudo dos corruptos. Na indistinção entre culpados e inocentes, os malfeitores se defendem procurando se confundir com os inocentes.

Esse caso do Ministério do Turismo talvez seja exemplar. A ocorrência da malversação é evidente, mas também a prisão preventiva de gente que apenas assinou um convênio com base em lei orçamentária específica, ou fez um pagamento contando com apenas dois meses de exercício do cargo, sem qualquer direito a prévia manifestação de defesa, caracterizam prisões evidentemente abusivas. E isto não é secundário face aos ganhos do desbaratamento de uma rede corrupta! Pessoas foram injustamente vítimas do uso da violência estatal e foram confundidas com os culpados,o que arrasa com a vida de uns em favor de outros que podem na injustiça contra colegas escusar suas culpas.

Objetivamente é papel profissional da polícia ,do Ministério Público e da jurisdição cumprir esta tarefa de diferenciar culpados de inocentes e, quando isto não é feito de forma adequada, não apenas os inocentes são vitimados por um abuso, mas a sociedade perde por não diferenciar claramente culpados de inocentes.

Pior que isso. As prisões realizadas o foram em caráter preventivo, em tese existentes apenas para situações específicas de defesa da apuração penal e de outros interesses públicos. Como prender pessoas com base apenas na prática de atos administrativos públicos e ainda de ilegalidade no mínimo discutível, por mera presunção de participarem de uma rede de corrupção por ocuparem cargos na estrutura estatal, sem qualquer prova individualizada de participação no crime, muito menos da criação de qualquer embaraço às investigações?

Obviamente tais prisões serão revogadas pelos órgãos superiores da jurisdição, mas sabemos que o custo à vida pessoal dos injustamente envolvidos jamais será recomposto. Mas os equívocos não se limitam a esta dimensão. A  inobservância pública de direitos fundamentais dos detidos foi evidente.

Um dos detidos foi fotografado algemado depois de ter saído de um avião. Pode-se apresentar a esfarrapada desculpa de o terem algemado por estar em um avião durante o vôo, mas não se justifica a continuidade do uso da algema em solo, quanto mais da exposição desta imagem ao público.

E  imaginando que estávamos no fim do poço dos abusos, ainda havia o subsolo. Fotos dos detidos sem camisas e portando placas de identificação foram divulgadas em tratamento evidentemente degradante e inadequado a  preservação da imagem de pessoas entregues a custódia estatal.

O Estado não é apenas responsável pela integridade física das pessoas sob sua custódia mas também o é por sua imagem e integridade moral.

Se ambicionamos o patamar de sociedade civilizada, não podemos tolerar que pessoas sem culpa formada, presas ainda provisoriamente sem o exercício de qualquer direito de defesa sejam expostas a público com o dorso nu, em evidente posição simbólica de condenados. Civilização se adquire na medida em que identificamos como reprovável não apenas a violência física injusta, mas também a violência simbólica que destrói vidas com tanta eficácia quanto a tortura destrói corpos.

Não é fácil, não é agradável, não é simpático lembrar destas dimensões de todo o ocorrido numa sociedade vítima de um modo corrupto de fazer política que parece tão entranhado em nossa cultura que sequer se restringe a rincões ideológicos. Ataca a esquerda, a direita e o centro com a mesma ferocidade. Obviamente é  muito dura de ser combatida, tarefa verdadeiramente heróica, hercúlea de nossos órgãos repressivos.

Mas não podemos nos aquietar face a erros cometidos neste combate. Não podemos trocar um crime de corrupção por outro de abuso no uso do poder estatal. Injustiças graves não podem ser a moeda aceitável de troca pela merecida punição de malfeitores do colarinho branco. Desrespeito a direitos mínimos de pessoas detidas, sejam quem forem, ricas ou pobres, poderosos ou meros burocratas, não é o meio adequado de realizar o correto fim de punir a corrupção.

Pedro Estevam Serrano

Pedro Estevam Serrano é advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP,mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.

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