Por Nicholas Lemann em 22/08/2011 na edição 656
Reproduzido da revista The New Yorker, 1/8/2011; intertítulos do OI; tradução de Jô Amado
Nós, jornalistas, devemos parecer criaturas estranhas para o resto do mundo. Adoramos The Front Page [livro de Hecht e McArthur, 1992] e Scoop [de Evelyn Waugh, 1938], que nos apresentam como preguiçosos, sem princípios e, irremediavelmente, escravos de informações fraudulentas. Hildy Johnson faz amizade com um suspeito de assassinato que fugiu da cadeia e esconde-o numa escrivaninha com tampa retrátil na Redação, para que ninguém o possa entrevistar – excelente! William Boot consegue uma informação exclusiva durante um golpe de Estado na nação de Ishmelia porque o restante dos jornalistas deixou a cidade seguindo uma pista falsa e Boot era tão azarado que não conseguiu juntar-se a eles – adorável!
Mas se os jornalistas se divertem sendo pouco convencionais e autogozadores, o que explica nossa tendência igualmente forte (principalmente nos Estados Unidos) a reivindicar portentosamente os pais da nação, a Primeira Emenda [da Constituição], o quarto poder e o direito público à livre expressão? Seriam os jornalistas vigaristas adoráveis ou cruzados dos direitos humanos? Ou seriam pessoas que se concederam o direito de mudar para ambas essas identidades num pulo?
No caso da imprensa de Rupert Murdoch – agora sem um de seus jornais de grande circulação, mas afora isso mantendo-se firme – dá para perceber sua autocomiseração sobre o escândalo das escutas clandestinas, ainda que suas declarações públicas oscilem, alternadamente, entre remorso e desafio. A News Corporation pertence a uma região da imprensa que gosta de se imaginar confortável e despretensiosamente sentada na tradição de The Front Page/ Scoop, num contato mais próximo com os gostos do público do que com os do establishment e resistente a um olhar próprio que define a cultura dos jornalões. Há uma suspeita palpável, na corporação, de que a indignação com o escândalo esconde inimizade ideológica e concorrência comercial.
O anonimato e a informação não-pública
Existe alguma coisa que não esteja suficientemente clara nesta discussão? A resposta tem relação com duas questões que correspondem às duas metades da alma jornalística – a do vigarista e a do santo. A primeira é se o escândalo das escutas clandestinas representa um tipo particularmente atroz de má conduta da imprensa, e não sua indecência comum. A segunda é se a violação das fronteiras normais de comportamento decente em busca de grandes matérias tem, de fato, um aspecto redentor de interesse público.
A resposta à primeira pergunta é fácil: sim! O caso dos grampos que desencadeou o escândalo aconteceu dentro de uma cultura de Redação (e, possivelmente, uma cultura da empresa) na qual as invasões tecnologicamente incentivadas da privacidade das pessoas se tornaram tão comum quanto o bloco de anotações de um repórter. E também – desculpem-me se pareço afetado – não é aceitável subornar policiais e autoridades públicas para servirem como colaboradores informais. É igualmente repelente o ecossistema de tipo mafioso que apóia o estilo de jornalismo do News of the World, no qual mesmo os políticos de primeiro escalão acham que passarão por graves consequências pessoais se não alimentarem o monstro esfomeado.
O encanto dos jornalistas de The Front Page – vale a pena lembrar – tinha a ver com a sua atividade, com todo o seu cinismo ríspido como uma força do bem para a sociedade – revelando o suborno, e não envolvendo-se com ele, e ajudando a absolver os falsamente acusados, e não manchando os inocentes.
Mas aí as coisas ficam mais complicadas. Repórteres têm uma necessidade poderosa, tão irrefreável como o instinto de sobrevivência, de tornar público coisas que não o são. Quase todas as entrevistas contêm pelo menos algumas perguntas intrometidas. Toda a entrevista num escritório inclui um olhar furtivo aos papéis deixados em cima da mesa. O intercâmbio do anonimato em troca de uma informação não-pública é uma transação essencial: não é suborno financeiro, mas, definitivamente, é uma troca de itens de valor, principalmente quando o vazamento significa uma vantagem tática para quem vazou.
Quando os jornalistas não pressionam persistentemente pela revelação, são condenados a ficar à mercê dos poderosos, mas o processo de pressionar, em sua realidade cotidiana, é semelhante a qualquer outro existente no mercado – e não tão exaltado quanto o fazem parecer os discursos de depois do jantar.
Como a informação é obtida
É difícil argumentar que a imprensa (que, na era da internet, é uma entidade cada vez mais difícil de definir) tem um trunfo perpétuo quando se trata de decidir o que merece ser tornado público. É óbvio que o escândalo das escutas clandestinas demonstra o absurdo desse absolutismo. O pluralismo da informação é visto mais como análogo ao pluralismo político: assim como é saudável políticos exaltados brigarem de maneira feia no Congresso, é bom para a sociedade ter a imprensa e outras entidades, em especial governamentais, lutando por quanto deve ser tornado público.
O caso da imprensa em relação a si própria é sempre mais forte quando aplicado a questões de importância pública. O WikiLeaks (que o colunista Bret Stephens, do Wall Street Journal, teve dificuldade em distinguir do escândalo das escutas clandestinas), produziu informações importantes sobre o funcionamento de nossas instituições políticas, diplomáticas e militares – de maneiras que podem levar a uma democracia mais rica. As mensagens do correio de voz de Milly Dowler não produziram.
Portanto, a questão do assunto é fundamental ao se tratar do comportamento sobre fronteiras e violação por parte da imprensa. O escândalo das escutas clandestinas, como o próprio nome sugere, é essencialmente sobre como a informação é obtida e só depois, de forma secundária, sobre a natureza dessa informação. Será que nunca é aceitável interceptar chamadas telefônicas pessoais, mesmo em casos de nítida importância pública?
Privacidade não deveria ser indefensável
Aqui, nos Estados Unidos – pelo menos a parte mais estabelecida dela – tem um padrão que funciona como um guia cotidiano para o comportamento, mesmo quando parece desafiar a lógica. Uma pilha de técnicas de coleta de informação – o que inclui arrombar e entrar, roubar e grampos clandestinos – é imperdoável e jamais pode ser diretamente realizada por organizações jornalísticas; mas se outras pessoas derem a essas organizações jornalísticas o fruto desse trabalho, então está tudo bem em publicá-las.
Bradley Manning é um traidor, mas Nick Davies, do Guardian (que recebeu os “diários de guerra” de Manning e do WikiLeaks), é um patriota; e Julian Assange fica numa nebulosa zona intermediária. Promotores que se utilizam de mandados de busca antes de qualificarem qualquer acusação são sórdidos. Os jornalistas que publicam transcrições das mensagens de Eliot Spitzer a um serviço de prostituição são modelos de profissionalismo. Presume-se que a santificação ritual ocorre no momento em que informações obtidas de maneira questionável passam para as mãos de um repórter.
Isso não representa qualquer esforço. O caso das escutas clandestinas deveria inspirar mais do que o regozijo de ver Rupert Murdoch e sua escolta de assessores e parentes numa situação complicada; as questões que levanta não se limitam aos jornalistas de tabloides. O caso deveria tornar a despertar a consciência de todo mundo de que a privacidade pessoal não deveria ser indefensável contra as intromissões de instituições poderosas.
Os jornalistas estão numa posição indispensavelmente boa para expor abusos de poder, mas uma credencial de imprensa não é um passe para viagens moralmente ilimitadas. Se o escândalo levou os jornalistas a refletirem sobre seu próprio poder, e sua capacidade de abusar desse poder, isso seria algo de bom.
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[Nicholas Lemann é professor de Jornalismo e decano da Universidade de Columbia, Nova York, EUA]
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