O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), João Ricardo dos Santos Costa, criticou a cobertura que o jornal Zero Hora fez de um seminário sobre liberdade de imprensa e Poder Judiciário, em Porto Alegre. A matéria sobre o evento omitiu a parte do debate relacionada aos monopólios de comunicação. “Esse é um caso paradigmático: em um evento promovido para discutir a liberdade de imprensa, a própria imprensa comete um atentado à liberdade de imprensa ao omitir um dos principais temas do evento", diz o juiz em entrevista à Carta Maior.
Marco Aurélio Weissheimer
No dia 21 outubro, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e a
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) promoveram, em Porto
Alegre, um seminário para discutir liberdade de imprensa e Poder
Judiciário. O convite para o encontro partiu da ANJ que já promoveu um
debate similar junto ao Supremo Tribunal Federal (Ver artigo de Venício Lima, Direito à comunicação: o “Fórum” e a “Ciranda”).
Os interesses temáticos envolvidos no debate não eram exatamente os
mesmos. Enquanto que a ANJ e as suas empresas afiliadas estavam mais
interessadas em debater a liberdade de imprensa contra ideias de
regulação e limite, a Ajuris queria debater também outros temas, como a
ameaça que os monopólios de comunicação representam para a liberdade de
imprensa e de expressão.
O jornal Zero Hora, do Grupo RBS (e filiado a ANJ) publicou no sábado (24/10/2011) uma matéria de uma página sobre o encontro. Intitulada “A defesa do direito de informar”,
a matéria destacou as falas favoráveis à agenda da ANJ – como as da
presidente da associação, Judith Brito, e do vice-presidente
Institucional e Jurídico da RBS, Paulo Tonet – e omitiu a parte do
debate que tratou do tema dos monopólios de comunicação. Na mesma
edição, o jornal publicou um editorial furioso contra o governador do
Rio Grande do Sul, Tarso Genro, acusando-o de querer censurar o
jornalismo investigativo (Ver matéria: Tarso rechaça editorial da RBS e diz que empresa manipulou conteúdo de conferência). No mesmo editorial, o jornal Zero Hora apresentou-se como porta-voz da “imprensa livre e independente” e afirmou que “a credibilidade é a sua principal credencial”.
Agora,
dois dias depois de o governador gaúcho acusar a RBS de ter manipulado o
conteúdo de uma conferência que proferiu no Ministério Público do RS,
omitindo uma parte que não interessava à construção da tese sobre a
“censura ao jornalismo investigativo”, mais uma autoridade, desta vez o
presidente da Ajuris, João Ricardo dos Santos Costa, vem a público
criticar uma cobertura da RBS, neste caso, sobre o evento promovido em
conjunto com a ANJ. A omissão da parte do debate relacionada ao tema do
monopólio incomodou o presidente da Associação de Juízes.
“Esse
é um caso paradigmático: em um evento promovido para discutir a
liberdade de imprensa, a própria imprensa comete um atentado à liberdade
de imprensa ao omitir um dos principais temas do evento que era a
discussão sobre os monopólios de comunicação”, disse João Ricardo dos Santos Costa em entrevista à Carta Maior.
Na entrevista, o presidente da Ajuris defende, citando Chomsky, que “o maior obstáculo à liberdade de imprensa e de expressão são os monopólios das empresas de comunicação”.
A “credibilidade” reivindicada pela RBS no editorial citado não
suporta, aparentemente, apresentar a voz de quem pensa diferente dela.
“O comportamento do jornal em questão ao veicular a notícia suprimindo
um dos temas mais importantes do debate, que é a questão dos monopólios,
mostra justamente a necessidade daquilo que estamos defendendo”,
destaca o magistrado.
Carta Maior: Qual foi o objetivo
do seminário sobre Liberdade de Imprensa e Poder Judiciário e quais
foram os principais temas debatidos no encontro realizado dia 21 de
outubro em Porto Alegre?
João Ricardo dos Santos Costa:
A Ajuris foi procurada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) para
promover um evento com o objetivo de debater liberdade de imprensa e o
Poder Judiciário. A relação se justifica pelo grande número de questões
que chegam ao Judiciário envolvendo a atividade jornalística. Essas
questões envolvem, muitas vezes, decisões que limitam a divulgação de
certas matérias. Pois bem, fomos procurados para fazer esse debate que
gira em torno de dois valores constitucionais: a liberdade de expressão e
a independência do Judiciário. Para alguns haveria um aparente conflito
entre esses dois princípios. Nós nos dispomos, então, a construir por
meio do debate o que significa a convivência desses dois valores em
sociedade democrática. Esse foi o grande desafio que esse evento
pretendia enfrentar.
Há duas posições veementes neste debate. De
um lado há aqueles que não admitem nenhum tipo de cerceamento à
informação; de outro, há aqueles que não admitem qualquer tipo de
restrição ao trabalho do Judiciário. Do ponto de vista constitucional,
cabe ao Judiciário solucionar todos os conflitos, inclusive os que
envolvem a imprensa. A imprensa não está fora das regulações judiciais.
Há um embate muito forte entre essas duas posições. Se, de um lado, a
ANJ buscou explorar o tema da liberdade de imprensa sob a ótica da
atividade judicial, nós buscamos fazer um debate sobre a questão
constitucional da liberdade de imprensa, no que diz respeito à
distribuição de concessões aos veículos de comunicação.
Carta Maior: Por que a Ajuris decidiu abordar o tema da liberdade de imprensa sob essa ótica?
João Ricardo dos Santos Costa:
Chomsky tem dito que o maior obstáculo à liberdade de imprensa e de
expressão são os monopólios das empresas de comunicação. Não só ele,
aliás. Vários pensadores contemporâneos dizem a mesma coisa. Para nós,
esse é o cerne da questão. Hoje não há pluralidade, não há apropriação
social da informação. O que existe é o interesse econômico que
prepondera. Os editoriais são muito mais voltados aos negócios. Hoje
mesmo, o editorial de um jornal local [Zero Hora/RBS] expressa
preocupação com a vitória de Cristina Kirchner na Argentina dizendo que
seria um governo populista que teria explorado o luto [pela morte de
Néstor Kirchner] para se reeleger.
Há toda uma preocupação sobre
o que representa esse governo para os negócios das empresas de
comunicação, em especial no que diz respeito ao conflito entre o governo
argentino e o grupo Clarín. A sociedade brasileira só tem conhecimento
do lado da empresa de comunicação. A visão do governo argentino sobre
esse tema nunca foi exposta aqui no Brasil.
E aí vem uma questão
fundamental relacionada à liberdade de imprensa. O problema não é o que
os meios de comunicação veiculam, mas sim o que omitem. Esse é o grande
problema a ser superado.
Carta Maior: E esse tema foi debatido no seminário?
João Ricardo dos Santos Costa:
No nosso evento, eu lembro de uma fala do deputado Miro Teixeira. Ele
disse que a história da censura envolve o cerceamento de grandes
pensadores da humanidade, como Descartes, Locke, Maquiavel, Montesquieu,
entre outros. Citou isso para exemplificar os danos sociais dessa
censura. Mas hoje o que nós observamos é que os grandes pensadores
contemporâneos são cerceados não pelos censores que existiam
antigamente, mas pelos próprios detentores dos meios de comunicação. Os
grandes meios de comunicação não veiculam, não debatem hoje os grandes
pensadores da humanidade. Nomes como Amartya Sen, Noam Chomsky,
Hobsbwan, entre outros, não têm suas ideias discutidas na mídia, não são
procurados para se manifestar sobre as grandes questões sociais. Não
são chamados pela grande mídia para dar sua opinião e o que acaba
prevalecendo é o interesse do capital financeiro, que é aquele que não
vai pagar a conta da crise.
Eu dou esse exemplo para demonstrar a
gravidade do problema representado por esse monopólio, esse interesse
econômico preponderante sobre o direito à informação. Esse interesse diz
incessantemente para a sociedade que a única saída para superar a crise
atual é por meio do sacrifício dos mais pobres e dos setores médios da
população. Não se toca na questão do sacrifício do setor financeiro.
Este setor não pode ter prejuízo. Quem vai ter prejuízo é a sociedade
como um todo, mesmo que isso atinja direitos fundamentais das pessoas.
Então,
esse debate sobre a democratização dos meios de comunicação é
extremamente importante e deve começar a ser feito de forma transparente
para que a sociedade se aproprie do que realmente está acontecendo e
que possa ter autonomia em suas decisões e mesmo influenciar a classe
política que hoje está entregue aos grandes financiadores de campanha
que são os mesmos que fornecem a informação enlatada que estamos
recebendo. Nós, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, estamos
propondo esse debate para a sociedade.
Carta Maior: Esse
debate que o senhor relatou não apareceu na cobertura midiática do
encontro pelo grupo RBS, que participou do mesmo. O jornal Zero Hora
dedicou uma página ao encontro, com uma matéria intitulada “A defesa do
direito de informar”, sem fazer nenhuma menção a essa parte do debate
envolvendo os temas do monopólio e da democratização dos meios de
comunicação. Como é que a Ajuris, que propôs esse debate, recebe esse
tipo de cobertura?
João Ricardo dos Santos Costa: O
comportamento do jornal em questão ao veicular a notícia suprimindo um
dos temas mais importantes do debate, que é a questão dos monopólios,
mostra justamente a necessidade daquilo que estamos defendendo. É como
eu disse antes: o problema maior é aquilo que é omitido, aquilo que não é
revelado. Esse é um caso paradigmático: em um evento promovido para
discutir a liberdade de imprensa, a própria imprensa comete um atentado à
liberdade de imprensa ao omitir um dos principais temas do evento que
era a discussão sobre os monopólios de comunicação. Nós não vamos nos
omitir em tratar desse assunto por mais dolorido que ele possa ser. É
evidente que não é um assunto que deva ser banalizado. Ele é o mais
importante de todos. Estamos tratando de pluralidade de pensamento.
Carta Maior: No
debate, o deputado federal Miro Teixeira defendeu que a liberdade de
imprensa é um direito absoluto. Qual sua opinião sobre isso?
João Ricardo dos Santos Costa:
Eu compartilho a ideia de que não há nenhum direito absoluto, não pode
haver. Neste contexto de monopólio, menos ainda. Liberdade absoluta de
imprensa em um contexto onde sequer a Constituição Federal é cumprida.
no sentido de proibir a existência de monopólios. É algo completamente
daninho à democracia. Outra coisa com a qual eu também não concordo ,
envolvendo esse debate, é a afirmação do ministro Marco Aurélio Buzzi
(do Superior Tribunal de Justiça) de que nós temos liberdade até para
matar. Nós não temos liberdade para matar. Não vejo, dentro da nossa
organização jurídica e de sociedade, que tenhamos liberdade para matar.
Do fato de, no Código Penal brasileiro, “matar alguém...pena de tanto a
tanto” aparecer como uma expressão afirmativa, não se segue o direito
de matar. Nós não podemos matar e não podemos violar o Direito. Não
temos essa liberdade. Não temos a liberdade de tirar a liberdade das
outras pessoas. O direito individual não chega a esse radicalismo que se
pretende com essa afirmação de que a liberdade de imprensa é um direito
absoluto.
Carta Maior: A ANJ realizou recentemente, no
Supremo Tribunal Federal (STF), um seminário semelhante a este
realizado no Rio Grande do Sul. Há, portanto, uma óbvia preocupação com a
posição do Poder Judiciário neste debate. Qual é, na sua avaliação, o
papel do Judiciário neste contexto?
João Ricardo dos Santos Costa:
O fato de se debater, em primeiro lugar, é um grande caminho para
amadurecer esses institutos que, aparentemente, estão colidindo, na
sociedade. É lógico que o Judiciário, nesta e em outras grandes questões
da sociedade brasileira, tem sido provocado a se pronunciar. Muito pela
ineficiência do Poder Legislativo. O STF tem decidido sobre questões
que o Legislativo se mostra incapaz de resolver: união homoafetiva,
aborto, demarcação de terras indígenas, células-tronco, entre outros. A
pressão envolvendo esses temas está vindo para cima do Judiciário. E o
Judiciário, por sua formatação de autonomia e independência, ele se
mostra menos vulnerável a pressões. Decidir é da essência do Poder
Judiciário, desagradando um dos lados em litígio.
Quando esse
lado é muito poderoso, os danos à instituição podem ser pesados. Numa
decisão, por exemplo, que contraria os interesses de um monopólio de
comunicação, esse monopólio joga todo esse seu poder para atingir a
credibilidade do Judiciário como instituição. Creio que aí aparece um
outro grande debate que deve ser feito sobre até que ponto esse tipo de
postura não corrói a nossa democracia.
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