quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A Democracia Esfaqueada

Texto: Rafael Tomyama* 
Fotos: Alex Costa (DN)

Farsa montada durante protesto de professores em greve ameaça estabilidade institucional no Ceará

Durante manifestação de professores em luta no Ceará pela implantação do Piso Nacional da categoria em 29/9, um episódio chocou o país: o brutal espancamento de professores dentro do prédio da Assembleia Legislativa, enquanto os parlamentares no plenário votavam uma mensagem do Executivo que não atendia às suas reivindicações. Para tentar justificar o injustificável, o destacamento da Polícia Militar na Casa tentou montar uma fraude com ajuda da imprensa, agora desmascarada. O caso é tão grave que detona, de uma só vez, a credibilidade do governo, do parlamento e da velha mídia no Estado.

Farsa

Chocante. Estarrecedor. Inaceitável. Esta é a verdadeira magnitude de um escândalo que atinge a reputação e credibilidade das instituições parlamentar, policial e jornalística no Ceará. O episódio da “faca”, encontrada e exibida como um troféu à imprensa pelo Comandante da segurança da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará durante manifestação dos professores em greve, no fatídico 29/9 naquele local, foi tida como a prova inconteste, na versão da Polícia Militar, de que o movimento dos grevistas é “violento” e que, portanto, o espancamento do qual foram vítimas foi um gesto de “defesa” da ordem e da integridade de seus membros e da patrimônio daquela Casa Legislativa.

Tese

Mais do que culpabilizar e criminalizar um movimento organizado reivindicatório legítimo, serviu também para sustentar a tese de um “confronto”, em que ambos os lados teriam protagonizado um “enfrentamento” em pé de igualdade, e descartar a do massacre de que foram vítimas. Os professores teriam cometido o sacrilégio de se utilizar da violência, cujo monopólio cabe exclusivamente à força repressiva do Estado.

A imprensa subserviente também fez a sua parte. Fotos e imagens dos professores sangrando foram estampadas ao lado do orgulhoso policial exibindo “a faca”. A versão policial foi transcrita sem a menor preocupação de ouvir professores sobre isso. Diante do conflito em questão era uma informação no mínimo suspeita. E a imprensa repetiu a versão da polícia sem ao menos se dar ao trabalho de checar. Na imagem publicada nos jornais via-se claramente não um cossoco ou uma faca de cozinha ou um cutelo ou uma peixeira, mas uma faca de uso exclusivo militar. Mesmo que ferisse a inteligência da audiência e do público leitor observar que a “prova” era parte de uma farsa, por razões óbvias.


E tem mais: A tal faca chegou na ALEC como? Flutuando? Materializou-se em meio à multidão? Não havia um indivíduo que a portava? Não há uma única de imagem de circuito interno de TV? Uma testemunha idônea? Uma impressão digital? Um resquício de prova qualquer, em que se revela o suposto sanguinário professor esfaqueador? Perguntas que martelavam a cabeça sem poder calar.

Ao observar-se o contexto da tentativa de criminalização de movimentos sociais, é um absurdo que se lance mão de um expediente típico da ditadura fascista, para supostamente “justificar” a repressão, o uso desmedido da força e o massacre aos trabalhadores, taxados de “baderneiros”. Comprovada a farsa, não há voz séria e honrada que não se indigne diante de tamanha monstruosidade.

Desmentido

Mas o patético espetáculo prossegue. Ao estardalhaço no “quente” da notícia segue uma protocolar nota-desementido no rodapé de uma coluna opinativa. Afinal, não se pode acusar o veículo de não ter atuado com isenção. Que é isso? Sobre o erro do jornal e da imprensa em geral, que repetiu como boneco de ventríloquo a mentira, nem uma linha. Porque se admitiria o próprio erro?

Mas os supostos principais politicamente beneficiados pela astúcia da manobra são: o governador do Ceará, Cid Gomes (PSB) e o presidente e demais deputados da maioria submissa na Assembleia. Pensavam que poderiam simplesmente esmagar e passar por cima dos trabalhadores em luta, votando a mensagem do Executivo e descendo-lhes cassetetes para que se calassem. Provaram do gosto amargo de uma vitória de Pirro e estão aí de volta para “negociar”. Negociar o quê? Não haviam ganho a parada?

Uma coisa é preciso admitir: o espancamento serviu para coesionar e fortalecer o movimento paredista num viés de maior radicalidade ainda, ganhando mais e mais adesões e manifestações de apoio de todos os segmentos sociais a cada dia. A cada passeata ou ato político multidões crescentes de lutadores de todas as idades e segmentos sociais se somam aos protestos, numa onda irrefreável de apoio e solidariedade.

A instituição ALEC, na contramão, em mais uma demonstração de sua truculência, publicou nota paga em página inteira no final de semana, nos jornais que circulam no Estado, com o dinheiro dos contribuintes, para fazer de conta que nada demais havia acontecido e posar de vítima e de altiva, por conta das “medidas” ainda a serem tomadas. Oremos para que não sejam novas medidas anti-povo.


Colchões

Vejamos o que diz o apurado por Érico Firmo na Coluna de Política do jornal O Povo em 4/11 (“Faca pertencia à policial”):  O coronel Pimentel, comandante militar da ALEC admitiu que a arma era de um membro da própria corporação militar.

Segundo os grevistas, os policiais estavam cortando os colchões em que estavam deitados os professores em greve de fome. É normal isso? Policiais investindo furiosamente contra colchões? Por quê? Qual seria o crime que estariam cometendo pessoas deitadas em colchões? Seriam eles os protagonistas do “ataque” que alegam terem sido vítimas os policiais? Pessoas deitadas em colchões?

Mas isso, a mídia subalterna não questiona. A risível versão policial de que foram empurrados por colchões (que, portanto, poderiam ser cortados) é a versão oficial e definitiva.

Laranjas

Ah, mas tem mais, segundo ele apareceu “outra faca”. Pena que não apareceu nas fotos. Segundo as informações fornecidas pelo próprio Pimentel, provavelmente se desprendeu e caiu quando os professores arremessaram o que tinham nas mãos (quando foram atacados). Arremessaram o quê? Laranjas. Ah, os policiais foram vítimas de um “ataque”. De quê? Laranjas. Com casca ou sem?

É um escândalo. Um atentado à democracia e ao Estado de Direito. Em qualquer país sério do mundo isso resultaria numa apuração isenta e rigorosa. Pra começar. E no mínimo num esclarecimento à sociedade, com aplicação de medidas disciplinares. Mas o que estão dizendo as autoridades? Nada. Silenciaram. Omitem-se? Prevaricam, portanto?

Enfim, tratado neste “nível” de displicência, o deboche vem à tona. Riem da cara do povo. Os “espertos” contam com a certeza da impunidade por seus atos, por se acharem do lado do poder. Mas a história ainda há de contar como, no final de setembro de 2011, as principais instituições da sociedade cearense fracassaram.

*Rafael Tomyama é estudante de jornalismo em Fortaleza-CE.

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