quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Sobre a intolerância da elite brasileira e o papel dos juízes para a democracia


Gerivaldo Neiva *
Em 1572, no episódio que a história oficial denomina “A Noite de São Bartolomeu”, os católicos franceses, apoiados pela nobreza também católica, mataram milhares de protestantes Huguenotes porque não concordavam com suas ideias reformistas. A história relata entre 30 e 100 mil protestantes mortos pelos católicos pelas ruas de Paris e de toda a França. Assim, em nome da fé, de Deus e de Jesus Cristo, a intolerância religiosa, contraditoriamente, causou um dos maiores massacres de inocentes da história da humanidade.
Mais de 100 anos depois da “Noite de São Bartolomeu”, John Locke, um dos maiores filósofos da modernidade, o maior para os ingleses, durante o exílio na Holanda, imposto pela intolerância política, escreveu uma pequena obra que deveria ser obrigatória para todos os estudiosos de todos os ramos do conhecimento: “Carta sobre a tolerância”. É certo que Locke escreveu sua Carta contra os abusos religiosos do absolutismo, mas sua ideia sobre a possibilidade da convivência entre pessoas com ideias divergentes influenciaram e fundamentaram a discussão sobre a concepção de democracia, nos moldes que hoje defendemos.
Além desses, os casos de intolerância são vastos na história da humanidade. Da mesma forma, além de Locke, desde Jesus Cristo a Mandela, são vastos os casos de luta pela igualdade e tolerância entre as pessoas com ideias diferentes. Lutas estas, aliás, que tem valido a pena. O mundo seria outro, para pior, sem as lutas da humanidade e de seus mártires por liberdade, igualdade e solidariedade.
Pois bem, para relembrar os antigos, no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de Dois Mil e Onze, o jornalista Reinaldo Azevedo (Abril – Veja), em um blog na Internet, ao criticar uma nota pública da Associação Juízes para a Democracia (AJD) manifestando seu apoio aos estudantes da USP-SP, elencou os membros da direção da AJD e observou aos seus leitores para que tivessem cuidado com eles quando fossem os julgadores do seu caso na justiça. Isso mesmo: cuidado com os juízes da AJD! Meu nome aparece duas vezes na relação. Como representante regional (Bahia) e coordenação editorial. Os demais nomes “dedurados” estão publicados, sem segredos, no site da AJD.
Antes de continuar, tenho a honra de apresentar a todos a Associação Juízes Para a Democracia (AJD): entidade civil sem fins lucrativos ou interesses corporativistas, tem objetivos estatutários que se concretizam na defesa intransigente dos valores próprios do Estado Democrático de Direito, na defesa abrangente da dignidade da pessoa humana, na democratização interna do Judiciário (na organização e atuação jurisdicional) e no resgate do serviço público (como serviço ao público) inerente ao exercício do poder, que deve se pautar pela total transparência, permitindo sempre o controle do cidadão”.
Quanto a mim, pouco tenho a dizer: Juiz de Direito da Comarca de Conceição do Coité, semi-árido baiano, nascido no sertão da Bahia, filho de agricultores, cumpridor de seus deveres, pagador de impostos, admirador de São Francisco de Assis, menos católico do que cristão e, sobretudo, alimenta o sonho de um dia ainda viver em uma sociedade “livre, justa e solidária”, conforme escrito na Constituição Federal de 1988.
Dito isto, fico a me perguntar, sem respostas rápidas e consistentes, sobre as razões do ódio desferido à AJD e aos seus membros. Da mesma forma, fico a me perguntar, olhando minha trajetória como Juiz de Direito, que mal poderia eu causar, propositadamente, a qualquer pessoa em meus julgamentos? Ora, se nosso propósito consiste exatamente “na defesa intransigente dos valores próprios do Estado Democrático de Direito e dignidade da pessoa humana”, por que agora somos apontados como perigosos aos nossos jurisdicionados?
Poderia até buscar respostas em experts sobre a personalidade humana, sobre a organização da sociedade, sobre o papel da ideologia em uma sociedade de classes etc etc. No entanto, não creio que valha a pena esta busca. Da mesma forma, não creio que valha a pena destilar o mesmo ódio de quem nos ataca. A igualdade de comportamento, ódio por ódio, seria a vitória deles. Então, pensando assim, também não defendo que lhe seja cassado o direito de se expressar ou criticar, pois novamente seríamos iguais e não quero ser igual a ele, jamais. Que continue, portanto!
Minha esperança reside na história da luta incansável pela liberdade. Não a história dos vencedores, mas a história da construção de um novo homem para um novo mundo. É esta a história que nos julgará, condenará ou absolverá. Assim tem sido por séculos e séculos. Uns serão esquecidos, outros irão para o lixo e outros serão lembrados como defensores da possibilidade de uma vida com tolerância, plural, igual, solidária e feliz. Nesta perspectiva de um mundo melhor para todos, então, pergunto: em que “lata” da história foram defenestrados os facínoras e em que “lata” da história são relembrados e celebrados os defensores da vida?
Tenho certo comigo, embasado nesta forma de compreender a história, que precisamos, ao lado do povo oprimido, continuar fazendo nossa revolução todos os dias e que a AJD será lembrada, em futuro não muito distante, como o embrião para o nascimento do Juiz Novo, do verdadeiro Magistrado, comprometido e envolvido com os direitos humanos, com a ética, com a dignidade humana e com a construção de uma nova forma de convivência humana e dos humanos com o planeta. Logo, o julgamento desta nossa proposta e prática de magistratura, é tarefa para a história do povo oprimido. Não é, e jamais será, portanto, tarefa para a elite dominante ou para seus bajuladores de plantão em redações de jornais e revistas comprometidos com a mentira e venda de ilusões.
De todos esses, exploradores e bajuladores, a história também se incumbirá e lhes destinará a “lata” que merecem. Como disse, não é a história morta e finda como eles apregoam, a história dos vencedores, mas a história das ruas, das praças, favelas, do povo oprimido, das lutas e das revoluções que acontecem a cada instante. Esta história, como serve de testemunha o tempo, não para jamais e continuará julgando, condenando e absolvendo. Quem viver, verá!
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 08.12.2011.

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