'A tortura para se alcançar uma meta predeterminada'. Foto: Luiza Strauss |
Por Wálter Maierovitch
Os historiadores contam que Tomás de Torquemada, torturador-mor da
Inquisição e falecido em 1498, era muito vaidoso. Numa pintura
encomendada a um artista famoso, Torquemada aparece em genuflexão entre
os adoradores de um Menino Jesus a brincar. Essa pintura está exposta na
igreja romana de Santa Maria Sopra Minerva.
O Plano de Ação Integrada Centro Legal executado pelo prefeito
Gilberto Kassab e pelo governador Geraldo Alckmin na Cracolândia
paulistana inspira-se no torturante método de Torquemada. A tortura para
se alcançar uma meta predeterminada. A propósito, revelou um agente da
autoridade de Alckmin, com aval de Kassab: “Como você consegue fazer com
que as pessoas busquem tratamento? Não é pela razão, é pelo sofrimento.
Dor e sofrimento fazem a pessoa pedir ajuda”.
A dupla Alckmin-Kassab não usou a Tortura da Roda de Torquemada, mas a
Rota e o comando-geral da Polícia Militar (PM). A PM foi incumbida de
prender traficantes-varejistas da Cracolândia. Isso para acabar de
imediato com a oferta e provocar, nos dependentes, crises de
abstinência. Governador e prefeito imaginaram que os dependentes
químicos fossem, pela dor, correr em busca de ajuda médica. Detalhe: não
havia adequada oferta de assistência médica aos viciados.
O tendão da Rua Prates, ao custo de 8 milhões de
reais, não está pronto. Idem quanto às Assistências Médicas
Ambulatoriais (AMAs) e os Centros de Apoio Psicossocial (CAPs) para
dependentes de álcool e drogas). Só depois do quarto dia de atuação
violenta da PM, Alckmin destinou 286 leitos para os dependentes da
Cracolândia. E o seu secretário prometeu, em futuro próximo, vagas em 33
instituições no interior de São Paulo. O sucesso quanto aos programas
de recuperação e a reinserção dessa “terceirização” para comunidades
terapêuticas são desconhecidos.
Diante do localizado problema de saúde pública e de exclusão social, a
dupla Alckmin-Kassab partiu, com a tropa da PM, para uma “limpeza de
área”. Não faltaram bombas de efeito moral, tiros de borracha e golpes
de cassetete. Uma bala de borracha disparada com fim punitivo lesionou a
boca de uma toxicômana menor de idade que se recusava a deixar a rua.
Quanto à rede de abastecimento a distância da Cracolândia nada se
investigou.
Uma lembrança. Nas discotecas exploradas empresarialmente na capital
de São Paulo, as drogas sintéticas ilícitas são abundantemente
fornecidas por redes operadas a distância por traficantes que nunca são
incomodados pelas polícias de Alckmin. Talvez sejam as mesmas redes da
Cracolândia, só que para lá enviam a mais barata e poluída das drogas.
Uma análise comparativa entre os dependentes da Cracolândia e os
usuários das discotecas exploradas comercialmente revela comportamentos
diversos. Na Cracolândia, o consumo é para escape, fuga do abandono e da
desestruturação. Nas discotecas, usa-se a droga como participação,
tendência. Na ânsia de virar o Capitão Nascimento dos paulistas, Alckmin
não percebe distinções fundamentais.
Pela legislação, as polícias devem fazer prevenção à oferta e à
repressão ao tráfico. As duas polícias, no entanto, se metem em escolas
para realizar inadequada prevenção ao consumo, tudo a tomar lugar de
educadores e operadores da área sanitária. Para apressar a “limpeza”, o
usuário da Cracolândia na posse de 1 grama de crack virou traficante.
Alckmin chancela uma presunção contra miseráveis e a sua Polícia
Judiciária, a contrariar a jurisprudência dos tribunais, lavra autos de
prisões em flagrante. No popular, “cana” para quem demora a desocupar a
Cracolândia. Um cordão sanitário foi criado na operação da Cracolândia
para evitar a migração de dependentes para os bairros do Bom Retiro e de
Higienópolis. O cordão emprega 150 policiais e conta com aporte de
cães, helicópteros e viaturas da Rota.
Diante dessa opção de Alckmin-Kassab por Torquemada, recordo uma
conversa que tive com o humanista Luigi Ciotti. Ele é respeitado em toda
a Europa pelo exemplar e exitoso trabalho realizado no Gruppo Abele, de
acolhimento, tratamento e reinserção de dependentes. Don Ciotti,
educador por formação salesiana, preocupa-se também com a repressão ao
narcotráfico. Nesse campo, Ciotti preside a maior rede europeia
antimáfias da sociedade civil, ou seja, a Libera – Associazioni nomi e
numeri contro le mafie: são 1,3 mil organizações filiadas.
Desde 1965, Ciotti luta para “dar voz a quem não tem voz” e prefere a
rua (strada) à sacristia. Tanto isso é verdade que Ciotti foi pioneiro
na criação de uma Università della Strada, que forma educadores sociais e
agentes de saúde pública. Aproxima-se dos dependentes “sem
desmoralizar, demonizar e assustar”.
Pano rápido. Ciotti, de vitoriosa greve de fome em
1975 para mudar a legislação que criminalizava e marginalizava o
dependente químico, dá um alerta fundamental: “O dependente químico é um
ser humano que não consegue encontrar um sentido para a sua vida. É
aquele que se sente isolado, é frágil na relação consigo próprio e com
os outros”.
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