A falta que a esperança faz
Por Felipe A. P. L. Costa*
Na terça-feira (7/2), matéria publicada pela Folha de S.Paulo informava: “Cientistas gravam canto de grilo de 165 milhões de anos”. O artigo foi assinado pela jornalista Sabine Righetti. Encontrei e li a matéria na quarta-feira (8/2). Em minha opinião, havia erros e mal-entendidos graves e, na tarde do mesmo dia, alertei o pessoal da editoria de Ciência da Folha (a rigor, editoria de “Ciência e Saúde”). Na manhã de quinta-feira recebi resposta. Fiquei com a sensação de que o artigo seria, digamos, corrigido. Não foi – pelo menos até a tarde de domingo (12/2).
A editoria de “Ciência e Saúde” da Folha talvez seja uma das melhores da imprensa brasileira. O seu pessoal deve colocar em média de cinco a 10 matérias no ar todos os dias. (Nos fins de semana, o número despenca.) Eu mesmo não leio todo esse material – é muita coisa e, na maioria das vezes, não é de interesse. Leio um ou outro artigo, dia sim, dia não; o que, no fim das contas, talvez represente no máximo o equivalente a uns 10% de tudo o que vai ao ar. Já não é tanta coisa assim, mas é mais do que suficiente para frustrar e aborrecer muitos leitores: há uma proliferação excessiva de erros e mal-entendidos, ao lado de um tom claramente sensacionalista.
No episódio de agora, alguns problemas chamaram a atenção. Um deles foi o uso impróprio do verbo “gravar”. De acordo com o que é descrito pela própria matéria, não caberia usar esse verbo: os pesquisadores lidaram com restos fósseis, nenhum dos quais foi “reanimado para cantar” durante a pesquisa.
Ortópteros tetigonídeos e seus parentes
O que os pesquisadores fizeram foi propor um padrão sonoro para uma espécie fóssil (Archaboilus musicus; família Haglidae), a partir do exame de marcas de estruturas estridulatórias excepcionalmente bem preservadas em rocha e da comparação dessas marcas com a morfologia e o funcionamento do aparelho estridulatório de algumas espécies viventes de esperanças e grilos. O mais indicado, portanto, seria falar em “simulação” ou, como fizeram os autores do artigo original (ver Gu et al., 2012), em “reconstrução”.
Outro problema que chamou a atenção tem a ver com a terminologia: o título e o texto falam o tempo todo em “grilo”, enquanto a ilustração que acompanha a matéria mostra a foto de um gafanhoto. Na verdade, A. musicus não era um grilo, muito menos um gafanhoto. Como a repórter poderia chegar a essa conclusão? Primeiro, porque o artigo original fala claramente que o fóssil estudado era de um ortóptero katydid, termo informal em inglês aplicado aos tetigonídeos (família Tettigoniidae) e seus parentes (viventes ou extintos) mais próximos – em contraste, por exemplo, ao termo cricket, aplicado aos grilos e a outros ortópteros semelhantes (várias famílias, mas principalmente Gryllidae). Sabendo disso, não seria necessário muito esforço para descobrir que os tetigonídeos são insetos popularmente conhecidos entre nós, brasileiros, como “esperanças”. Na linguagem informal, este último termo também poderia ser aplicado aos parentes extintos mais próximos dos tetigonídeos, como é o caso da linhagem à qual pertencia a espécie fóssil estudada.
Por um lado, a confusão se torna ainda mais injustificada quando ficamos sabendo que a repórter, segundo ela mesma escreveu, teria conversado com um entomólogo brasileiro durante a elaboração da matéria. Nesse caso, o que custava então ela ter conferido com ele sobre o nome popular mais indicado para usar em um texto em português? Não sei responder, mas cabe aqui uma atenuante: os katydids, também são referidos em inglês como bushcrickets (algo como “grilos do mato”). Como este último termo aparece no artigo original, ainda que apenas uma ou duas vezes, é possível que uma leitura apressada tenha induzido a repórter ao erro: bushcricket ≈ cricket = grilo.
Grilos, gafanhotos, esperanças
Tratar grilos, gafanhotos e esperanças como uma coisa só equivaleria a escrever um artigo sobre produção leiteira de vacas, chamado-as de camelos e ilustrando a matéria com a foto de uma girafa. Quer dizer, embora grilos, gafanhotos e esperanças sejam aparentados, a ponto de serem agrupados em uma mesma ordem (Orthoptera), eles representam linhagens distintas.
Como parentes próximos, esses insetos partilham de certos caracteres em comum, como a presença de fêmures dilatados no terceiro par de pernas, o hábito de saltar e a estridulação (isto é, produzir sons atritando uma parte do corpo contra outra), mas há diferenças notáveis entre eles. E é justamente com base no exame das diferenças que nós podemos distinguir um grupo do outro. Nesse sentido, eis algumas dicas:
** Grilos: antenas longas, em geral tão ou mais longas que o corpo;
tarsos com três segmentos; ovipositor alongado, mais ou menos
cilíndrico; estridulam tanto durante o dia como à noite; órgãos
auditivos localizados na base das tíbias anteriores; disposição das asas
sobre o corpo lembra um “C” deitado; coloração do corpo
predominantemente escura (preta ou marrom); espécies viventes estão
acomodadas em várias famílias, como Gryllidae (4,7 mil espécies) e
Gryllacrididae (700).
** Gafanhotos: antenas curtas, em geral com menos da metade do
comprimento do corpo; tarsos com três segmentos; ovipositor curto;
estridulam durante o dia; órgãos auditivos localizados nos lados do
primeiro segmento abdominal; disposição das asas sobre o corpo em “V”
invertido, lembrando o telhado de uma casa; coloração variável, embora
muitas espécies tenham o corpo esverdeado ou amarronzado; várias
famílias, incluindo Acrididae (6.5 mil espécies) e Tetrigidae (1,7 mil).
** Esperanças: antenas longas, em geral tão ou mais longas que o corpo;
tarsos com quatro segmentos; ovipositor alongado, laminar; estridulam
principalmente durante a noite; órgãos auditivos localizados na base das
tíbias anteriores; disposição das asas sobre o corpo em “V” invertido,
lembrando o telhado de uma casa; coloração variável, embora muitas
espécies tenham o corpo esverdeado; 1 família: Tettigoniidae (6,9 mil
espécies).
Por fim, não custa lembrar: de acordo com a definição atual (por exemplo, Gullan & Cranston, 2007), a ordem Orthoptera reúne duas grandes linhagens de espécies viventes: de um lado, os gafanhotos (subordem Caelifera); e, de outro, os grilos e as esperanças (subordem Ensifera), além de alguns insetos menos conhecidos do público, como as paquinhas ou grilos-toupeiras (família Gryllotalpidae). Digo isso porque os manuais de entomologia mais antigos (por exemplo, Borror & DeLong, 1988) incluíam outros grupos entre os ortópteros, como as baratas, os louva-a-deuses e os bichos-paus. As evidências ora disponíveis, no entanto, indicam que cada um desses grupos deve ser acomodado em uma ordem própria – Blattodea (baratas), Mantodea (louva-a-deuses) e Phasmatodea (bichos-paus e bichos-folhas).
Bibliografia citada
** Borror, D. J. & DeLong, D. M. 1988 [1964]. Introdução ao estudo dos insetos. SP, Blücher.
** Gu, J.-J. & outros 5 coautores. 2012. Wing stridulation in a Jurassic katydid (Insecta, Orthoptera) produced low-pitched musical calls to attract females. Proceedings of the National Academy of Sciences. [Artigo disponível por enquanto apenas em versão eletrônica; ver aqui(c. 700 KB).]
** Gullan, P. J. & Cranston, P. S. 2007. Os insetos: um resumo de entomologia, 3ª edição. SP, Editora Roca.
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* [Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)]
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