Baltasar Garzón ficou conhecido por conseguir a prisão de Augusto Pinochet |
O Supremo Tribunal da Espanha condenou nesta quinta-feira o juiz Baltasar Garzón - conhecido internacionalmente por ter decretado a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet - a 11 anos de afastamento de sua profissão.
Garzón, de 56 anos, foi condenado por abuso de autoridade sob acusações de ter ordenado escutas telefônicas ilegais entre advogados e réus em um caso de corrupção.
Não cabe recurso à sentença, segundo as agências internacionais, o
que deve, na prática, pôr fim à carreira do juiz, que ganhou fama por
encampar casos polêmicos internacionais relacionados a direitos humanos.
Em outro caso controverso que reabriu feridas da
ditadura franquista (1936-1975), Garzón é processado por suposto abuso
de poder ao investigar dezenas de milhares de assassinatos atribuídos a
forças leais ao general Francisco Franco.
O juiz é acusado pela organização de extrema
direita Manos Limpias (Mãos Limpas) de ter desconsiderado a Lei de
Anistia local, de 1977.
O caso trouxe à tona resquícios do franquismo,
reformatou antigas divisões na sociedade e possibilitou que familiares
de desaparecidos levassem, pela primeira vez, seus dramas aos tribunais.
O juiz ainda responde a outros processo, que
envolve o fato de ter conseguido patrocínio do Banco Santander para
seminários que ministrou em Nova York.
Reações e apoios
O trabalho de Garzón sobre o franquismo gerou reações dos setores mais conservadores.
"Ao abrir essa investigação (sobre o
franquismo), ele acabou por reeditar as duas Espanhas, situação que
havia sido totalmente superada pela Constituição e pelos mais de 30 anos
de democracia", disse o diretor da organização Manos Limpias, Miguel
Bernad, à BBC Brasil.
Mas um grupo formado por artistas, intelectuais,
familiares das vítimas do regime de Francisco Franco e partidos de
esquerda foram às ruas declarar-lhe apoio.
"Esse processo contra Garzón é um aviso da
direita espanhola, que tenta impor um limite à Justiça. Pode-se julgar
crimes contra a humanidade ocorridos em outros países, mas não aqui",
avalia, em entrevista à BBC Brasil, Rubén Fernández Casar, membro do
partido Izquierda Unida, ao qual Garzón se aproxima ideologicamente.
Um grupo denominado "Solidários com Garzón"
(www.solidarioscongarzon.com) organiza espetáculos artísticos e
manifestações em apoio ao magistrado. Entre os que aderiram estão o
cineasta Pedro Almodóvar e a atriz Pilar Bardem, mãe do também ator
Javier Bardem.
Em resposta à condenação desta quinta-feira, o grupo escreveu em seu site que organizará uma manifestação em Madri.
Caso inédito
Garzón divide opiniões na sociedade espanhola |
A ofensiva contra Garzón também reacendeu uma polêmica em relação ao
tratamento judicial que deve ser dado aos crimes contra a humanidade.
Entidades de defesa dos direitos humanos, como Anistia Internacional e
Human Rights Watch, compartilham a ideia do magistrado de que os delitos
contra a humanidade são permanentes e não devem ser abarcados pelas
leis nacionais de anistia.
"Considerar ilegal sua tentativa de aplicar a
jurisdição universal e de investigar crimes contra a humanidade é uma
ameaça à independência da Justiça. Eles não são passíveis de
prescrição", defende Reed Brody, observador da Human Rights Watch
enviado a Madri, em entrevista à BBC Brasil.
"O judiciário precisa de juízes corajosos como
ele, que mudou o mundo e derrubou muros de impunidade com seu trabalho,
ao prender Pinochet e agir contra as ditaduras latinoamericanas",
completa Brody.
Já o observador da Anistia Internacional,
Ignacio Jovtis, destaca a atuação de Garzón como "pioneira na defesa da
jurisdição universal".
"É escandaloso que um juiz seja processado por
investigar crimes contra os direitos humanos. É o primeiro caso, no
mundo, de que temos notícia", disse Jovtis à BBC Brasil.
Do banco dos réus, Garzón alegou que utilizou,
em relação ao franquismo, os mesmos princípios que levaram à detenção de
Pinochet, em 1998. Mas, ainda assim, a Suprema Corte acatou a acusação
do grupo Manos Limpias e avalia se ele desconsiderou a anistia.
"Ele prevaricou, ultrapassou seus limites, pois
existe a Lei de Memória Histórica que repara moral e economicamente os
vencidos. Mas, como é de esquerda e se crê acima da Constituição, ditou a
resolução contra o franquismo e por isso deve ser afastado dos
tribunais para sempre", contesta Miguel Bernad, da Manos Limpias.
Testemunhas relatam crimes
O julgamento, no entanto, tomou um rumo
inesperado para a acusação. A defesa apresentou familiares de vítimas do
franquismo como testemunhas e elas relatam, pela primeira vez a um
tribunal, as atrocidades do regime.
Uma senhora contou como seu pai foi torturado e
morto por um oficial das forças armadas que, ainda por cima, leva no
pulso o relógio da vítima. Um filho relembrou o assassinato do pai por
ter dado pães e ovos a rebeldes. Um pesquisador contou como o Estado
articulava esquadrões da morte.
A acusação alegou que o processo não trata disso
e desqualificou os depoimentos, mas o juiz responsável autorizou a
continuação dos testemunhos nesta semana.
"Ele atuou como sempre, de acordo com sua
sensibilidade social", defende o advogado Manuel Gonzalez Alonso, amigo
pessoal de Garzón, à BBC Brasil. Alonso crê que sua preocupação social
vem de sua origem humilde - seu pai cultivou azeitonas e trabalhou como
frentista num posto de gasolina.
"Baltasar abriu o processo porque foi procurado pelas famílias das vítimas e, como sempre, não teve medo", adicionou.
*Com reportagem de Vítor Rocha, de Madri para a BBC Brasil
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