Musical de 1968 é um dos acontecimentos mais importantes da cultura brasileira
Escrito pelo compositor Chico Buarque e levado aos palcos em janeiro de 1968 pelo encenador José Celso Martinez Corrêa, o musical Roda Viva é visto como um dos mitos fundadores da cultura brasileira contemporânea. Ainda assim, pouquíssimos brasileiros tiveram a oportunidade de conhecer o texto da peça e presenciar uma montagem sua. Chico tem vetado qualquer reencarnação de Roda Viva. Lançado em 1968 pela (extinta) Editora Sabiá, dos escritores Fernando Sabino e Rubem Braga, o texto também está fora de catálogo há décadas.
"Há um tabu social por trás disso, uma coisa que precisa ser mexida",
provoca Zé Celso. "É um resquício da ditadura, uma sequela, uma doença.
O fato de Chico não publicar e não deixar montarr é muito estranho."
O que parece ser uma autocensura de Chico com relação a Roda Viva
soa desconcertante porque se trata de um herói pop da resistência à
ditadura militar, ele próprio censurado repetidas vezes pelo regime. O
autor de Sabiá (1968), Apesar de Você (1970) e Cálice (1973)
não dá detalhes sobre o que motiva a interdição, mas reconhece o veto
falando por intermédio de seu assessor de imprensa, Mario Canivello. "A
justificativa do Chico é simples: ele considera que as deficiências do
texto ficam ainda mais evidentes à medida que o tempo passa. Houve um
caso em que, se a memória não me trai, alunos da universidade UniRio
tentaram colocar em cartaz uma montagem acadêmica da peça. Só esqueceram
o pequeno detalhe de que precisavam antes do consentimento do autor",
afirma Canivello.
"Falei com Marieta Severo, ela diz que Chico acha a peça horrível,
fraca", conta Zé Celso, referindo-se à ex-mulher do artista, que
interpretou a protagonista feminina de Roda Viva no Teatro
Princesa Isabel, no Rio. "Não é suficiente, não se proíbe uma peça
porque ela é fraca ou horrível. O artista não pode proibir a própria
obra. Quer dizer, pode, se quiser, mas Chico, um sujeito ligado ao lado
libertário, não pode."
Dirigida por Patrícia Zambiroli, a peça da UniRio a que Canivello se
refere estrearia no Teatro Glória, em 2005, mas o autor não liberou.
Outro que emperrou em Roda Viva foi Heron Coelho, que já havia reencenado os musicais buarquianos Gota d’Água (1975), em 2006, e Calabar - O Elogio da Traição
(1973), em 2008. "Por critérios particulares do querido Chico, atendi
ao pedido de não levar adiante o projeto, que estava avançado", admite
Heron, cuidadoso. "Cancelei a montagem e passei adiante o patrocínio que
tinha."
Roda Viva ficou eternizada como uma montagem de alto teor
político, principalmente por causa dos episódios que marcaram duas
encenações em 1968. Em 17 de julho, numa ação batizada "Quadrado Morto",
o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth
Escobar, onde ocorria a montagem paulistana da peça. Depredaram o
espaço, despiram e espancaram o elenco, que incluía Rodrigo Santiago,
Marília Pêra (no papel que fora de Marieta), Antônio Pedro e Paulo César
Pereio. A agressão se repetiu em 3 de outubro, em Porto Alegre, dessa
vez por ação direta do Exército brasileiro, segundo Zé Celso. Roda Viva
morreu ali, dois meses antes do AI-5.
"Hoje, eu voltaria a fazer Roda Viva, de birra.
Deveria ser remontada, porque fez uma revolução no teatro brasileiro",
diz Zé Celso. "Chico vinha de uma formação muito tradicionalista, os
Buarque de Holanda eram muito religiosos. A peça não tinha nu, mas ainda
assim ele pediu: ‘Olha, Marieta não pode ficar nua’. Voltar a Roda Viva
talvez fosse libertador, porque deve ter um trauma. Diziam na época que
a peça era minha, que era alienada. Ele acreditou nisso", afirma. Zé
Celso também questiona a suposição de que a indisposição atual do autor
com a face "política" de sua obra explica sua guerra pessoal contra a
peça, estreada quando ele tinha 23 anos.
"Roda Viva é constantemente supervalorizada na obra do Chico", opina o historiador Gustavo Alonso, autor do livro ensaístico Simonal - Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga"
(Record, 2011), em que tece considerações sobre a construção da imagem
pública de Chico como herói da resistência esquerdista. "Não é um texto
político, é uma crítica à jovem guarda", Alonso afirma.
A preocupação central de Chico à época era criticar as engrenagens da
produção de ídolos pop - podia estar se referindo a Roberto Carlos ou
mesmo a si próprio. "Ele trata das metamorfoses a que a máquina de
marketing obriga Benedito da Silva, que se transforma em Ben Silver, um
ídolo de iê-iê-iê", evoca Zé Celso. "Mas o personagem fica ultrapassado
porque vem a linha da música brasileira, é quando canta Roda Viva.
Em seguida, surge a turma de Geraldo Vandré, da militância, da música
ideológica. E depois é comido pela máquina. É obrigado a se suicidar, e a
mulher dele, Marieta, toma seu lugar, vira uma coisa parecida com
Caetano Veloso, mas mais pro hippie."
Zé Celso credita ao coro de Roda Viva grande parte do sucesso da peça
em 1968. "Era toda uma fauna inédita, tinha negro, gay, mulher, gente
feia, gente bonita, cientista, ambientalista. De repente, caíam em cima
daquele público supercareta do início de 1968. Era um estupro, um
estupro com exaltação." Entre os atores do coro, estavam Pedro Paulo
Rangel, Zezé Motta e André Valli. "Nós começamos isso no Brasil. Foi um
ano antes de Hair, que não é nada diante de Roda Viva. O Brasil nesse sentido foi vanguarda, porque tudo começou a explodir aqui em 1967. No resto do mundo explodiu em 1968."
Nenhum comentário:
Postar um comentário