Rodolpho Motta Lima
Dois episódios me chamaram a atenção nos últimos dias. Reúno-os aqui porque acho que, de alguma forma, são faces de uma mesma moeda. O primeiro, divulgado fartamente pela mídia, diz respeito à decisão do STJ considerando - em caso que envolvia uma menina de 12 anos - que nem sempre o ato sexual com menores de 14 anos pode ser considerado estupro. O segundo, que, por sua aparente ingenuidade, não mereceu nenhuma observação nos veículos de comunicação, refere-se a um episódio da nova novela da Globo, “Avenida Brasil”, em que se promove, de brincadeirinha, o “casamento” de duas crianças, uma delas de 7 anos de idade.
Junto esses dois fatos, um lamentavelmente real e outro fruto da “criatividade” do novelista, porque os dois põem a nu um dos problemas mais sérios da sociedade contemporânea: a forma como está sendo encarada a infância.
A decisão jurídica parece ser mais uma – e temos sido brindados por muitas, ultimamente – em que, em nome de princípios “legais”, joga-se a dignidade e a moralidade para escanteio. Segundo a ministra relatora, “não se pode considerar crime o ato que não viola o bem jurídico tutelado – no caso, a liberdade sexual”, uma vez que as menores a que se referia o processo julgado “se prostituíam havia tempos” quando do suposto crime. Segundo transcrição na imprensa, no Acórdão que consolidou a decisão relata-se que “a prova trazida aos autos demonstra, fartamente, que as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo. Embora imoral e reprovável a conduta praticada pelo réu, não restaram configurados os tipos penais pelos quais foi denunciado”.
Já se discute a revisão dessa decisão, diante da indignação geral, que conta com as vozes dos Ministros da Justiça e da Secretaria dos Direitos Humanos e já chegou ao âmbito da ONU. Para a Ministra Maria do Rosário, que fala em buscar medidas jurídicas cabíveis para reverter o decidido, “a sentença demonstra que quem foi julgada foi a vítima, mas não quem está respondendo pela prática de um crime".
O fato é que, legal ou não, a decisão do STJ permite o entendimento de que a prostituição infantil – meninas de 12 anos, no caso – é aceitável, não sendo objeto de punibilidade aqueles que dela se aproveitam. Não querendo, aqui, enveredar pelos meandros jurídicos, vislumbro nesse caso alguns aspectos que merecem reflexão. Em primeiro lugar, uma questão de gênero, que afirma o poder machista do homem-sujeito sobre a mulher-objeto. No caso, a justificativa da relatora caberia bem no que alguém já batizou de “machismo às avessas”, quando a própria mulher o assume ou admite. Por outro lado, será que não houve uma questão de classe? Convenhamos: a justiça a favor do mais poderoso não é novidade entre nós... Finalmente, tão ou mais grave, a decisão reforça uma postura que muitos adultos vêm assumindo em relação às suas crianças, estimulando uma precocidade não raro marcada por apelos à sensualidade capazes de gerar consequências que eles mesmos irão lamentar. Claro que não é esse o caso da prostituição das meninas - muito mais uma tragédia social do que comportamental. Mas a decisão do STJ parece vincular o fato de as crianças se prostituírem a uma perda de inocência e de ingenuidade, atribuindo-lhes consciência e informação. Será?
Chego aqui ao segundo fato, o episódio da novela global que promoveu, entre as crianças de um lixão idealizado, uma cerimônia lúdica de casamento de uma menina de 7 anos com um menino de idade semelhante, com direito a beijo na boca... Não se veja aqui uma visão moralista nessa observação. O assunto é realmente sério e me remete ao recentíssimo artigo da Leila Cordeiro, que fundamenta bem as razões que levam a Globo a promover todos os absurdos – incluídos aqui os vulgares – em busca de uma audiência que ela acha que pode obter por esse caminho. As novelas estão repletas de monstrinhos infantis, poços de precocidade indevida. Não resisto aqui a um comentário paralelo, uma digressão: a Globo conseguiu, agora, inventar um BBB com lutadores do MMA... Mas essa é outra história que eu acho que ainda vai ter seus efeitos para a sociedade. Esperemos...
Os dois fatos aqui tratados permitem, talvez, uma advertência: antes que seja tarde, a sociedade deve despertar para as reformas que se impõem, não apenas a reforma política, mas também a do nosso judiciário, que anda pródigo em escândalos internos e em decisões contrárias ao interesse público. E também é preciso reformar a permissibilidade que confere à mídia, pouco responsável e apenas interessada em audiência , o poder de desinformar e, mais recentemente, o de deformar as mentes brasileiras. Um crime que assume proporções trágicas quando envolve os segmentos mais jovens, as crianças e os adolescentes.
Machado de Assis, buscando a frase no poeta inglês Wordsworth, intitula um capítulo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” com a afirmação de que “O menino é o pai do homem”. Sabemos que é isso mesmo. O que vivenciamos e experimentamos na infância repercutirá em nossa maturidade. O que forjarmos em nossas crianças definirá o seu futuro como indivíduos dignos e conscientes, capazes de enxergar muito mais do que o próprio umbigo.
Um comentário:
Eu também fiquei horrorizada com o abuso de colocar crianças casando e beijando na boca numa novela que tem 40 pontos de audiência.
Porém, a Dilma disse que adora novela da Globo e ainda fez propaganda da Griselda de Fina Estampa em um evento oficial.
Então, meu amor, estamos no fundo do poço e sem corda pra subir.
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