sábado, 28 de janeiro de 2012

História do jornalismo e da repressão sai do armário

Por Alberto Dines

Apesar das diatribes, afrontas e ironias que produziu neste Observatório, ao longo de 22 quinzenas, a série de fascículos ora encerrada no Valor Econômico constitui um marco. Como parte dessa controvérsia e igualmente desfeiteado, este observador só consegue enxergar seus aspectos positivos. Os 60 anos de profissão e, sobretudo, os 37 dedicados à observação da imprensa ajudaram a converter esses duelos num exercício inevitável e até certo ponto prazeroso. Só se defende convicções com gosto, mesmo que a intolerância esteja à espreita e o preço a pagar seja alto.

O debate sobre a crucialidade de Hipólito da Costa e do seu mensário Correio Braziliense começou em 1908, há 104 anos, porém não prosseguiu e foi rapidamente desativado porque a intelectualidade brasileira não gosta de sustos, prefere suaves aparências. Encarar nosso vexatório atraso cultural e jornalístico fere brios, mesmo que os responsáveis sejam os colonizadores e a parcela deles que jamais acreditou na liberdade de saber.

O Santo Ofício da Herética Pravidade, vulgo Inquisição, foi o nosso algoz. Nos 285 anos em que aqui vigorou poucas foram suas vítimas fatais: apenas 22 brasileiros ou portugueses residentes na colônia foram executados (ou relaxados à justiça secular, como eufemisticamente se dizia) em Autos da Fé lisboetas.

Mas foram centenas os que morreram doentes nos cárceres dos Estáus, cujos processos ficaram inconclusos e fora das estatísticas. Um deles, o cristão novo português Bento Teixeira, mestre escola e poeta (autor da Prosopopéia, primeira obra poética impressa escrita no Brasil): preso em Pernambuco, foi remetido para Lisboa em 1596 e morreu tuberculoso no cárcere em 1600. Exceto o carioca Antonio José da Silva, o Judeu, nenhuma dessas execuções relacionava-se com atividades literárias. O móvel era religioso, mas a repressão religiosa não pode ser minimizada, é grave delito político.

Clima de terror

Convém lembrar que os encarregados de inspecionar os barcos que chegavam aos portos brasileiros para apreender livros proibidos pela Censura Eclesiástica não eram policiais, eram familiares do Santo Ofício, esbirros aliciados nas melhores famílias para cumprir a sagrada missão expurgadora. Nos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa há inúmeros relatórios de diligências a bordo, sobretudo no fim do século 18, quando começaram a chegar as obras dos chamados Philósofos, iluministas franceses e alemães.

Exatamente no período das Luzes, 26 estudantes de Coimbra, muitos deles nascidos no Brasil, foram punidos pela Inquisição local. Os mais conhecidos foram o mineiro Francisco de Melo Franco (que, depois de formado em Medicina, escreveu a sátira No Reino da Estupidez e o tratado precursor da psicologia, Medicina Teológica) e o fluminense Antonio de Morais e Silva, que depois de formado em Direito escreveu o celebrado Dicionário da Língua Portuguesa. O Morais, como ficou conhecido, foi amigo e colaborador de Hipólito da Costa em alguns dos seus projetos literários. Outros participantes do grupo desapareceram de cena depois de punidos.

Os diferentes róis de livros proibidos de circular nos dois lados do oceano foram obra de eclesiásticos. A Coroa portuguesa não possuía quadros seculares capazes de avaliar livros e ideias e a igreja católica os possuía de sobra. O que nos leva ao último fascículo da gloriosa série.

Aparentemente não houve espaço para oferecer mais dados sobre aquele que primeiro exerceu a função de jornalista na colônia, frei Tibúrcio José da Rocha, redator da Gazeta do Rio de Janeiro (ver “Uma gazeta na corte”, reproduzido do Valor Econômico, 20/1/2012). É provável que o livro que resultará deste esforço jornalístico seja mais amplo e preciso.

E não poderá ignorar o trabalho da jovem jornalista-pesquisadora Lilia Diniz (TV Brasil e equipe deste Observatório da Imprensa), que descobriu nos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa e depois em acervos documentais brasileiros um dado fundamental na vida de frei Tibúrcio – tão saudado pela tropa de choque anti-Hipólito.

Também ele teve problemas com a Inquisição. Não por que tenha sido adepto da subversiva maçonaria, seus problemas eram outros – “espirituais”. Por isso, frei Tibúrcio foi obrigado a procurar não o seu confessor, mas o Santo Ofício, porque se entregara a “ideias heréticas”.

Se não batesse às portas da Inquisição teria a sua carreira definitivamente interrompida. Os arquivos da Inquisição eram rigorosos e implacáveis, os cultores dos “livros negros” ainda instalados em algumas de nossas redações aprenderam a arte embargadora em cartilhas apropriadas.

Os inquisidores portugueses abriram um processo, frei Tibúrcio foi absolvido, no ano seguinte (1808) estava no Brasil e logo assumia a função de redator-funcionário público. Primeiro jornalista ou primeiro assessor de imprensa? Irrelevante. Certamente, o último enredado pela Inquisição. Exemplo claro, inquestionável, do clima de terror imposto no império português por uma igreja obscurantista e repressora.

Disciplina necessária

A história de Frei Tibúrcio apesar do susto inicial teve final feliz. Mas doravante ninguém poderá ignorar que os dois fundadores da imprensa brasileira – Hipólito e Tibúrcio – passaram pela máquina de silenciar chamada Inquisição (ver abaixo texto em que Lilia Diniz revela o seu valioso achado).

Além dos meritórios desdobramentos que produziu, a série de Valor veio demonstrar que a pesquisa histórica não se faz apenas nas estantes das bibliotecas e hemerotecas, é preciso sujar os dedos com a poeira e o fungo das fontes primárias: os documentos.

A história da imprensa brasileira não pode resumir-se à mera reiteração de informações extraídas de fontes impressas, secundárias, nem sempre fidedignas. O caso do colecionador Alfredo de Carvalho é exemplar: ele não buscava a verdade, estava a fim apenas de confirmar seus preconceitos (ver, neste OI, “Reabilitação de Hipólito é façanha histórica“).

A série de fascículos elegantemente editada no mais importante diário de economia não apenas acabou com o tabu em torno da pré-história e história da imprensa brasileira. Ela alavancou um debate que deveria ter nascido na academia e talvez lá ficasse sepultado não fosse o fato de ter vazado para a imprensa alternativa e irremediavelmente integrado à pauta jornalística, contemporânea ou futura.

A disciplina “História da Imprensa” ainda não é obrigatória na grade curricular das escolas de jornalismo brasileiras. Logo será: a indústria do ensino superior não desperdiçará uma cadeira com tamanho potencial mercadológico.

Assim como a pós-gradução ESPM-Abril incluiu a “História do Jornalismo” na primeira edição do curso (2011), e agora ampliou o seu escopo para “História e Mudanças no Jornalismo”, os concorrentes irão atrás. O negócio, a profissão e a instituição jornalística o exigem.

Quem foi frei Tibúrcio José da Rocha (1778-??)

Lilia Diniz

Filho de um comissário do Santo Ofício, frei Tibúrcio estudou no Colégio de São Pedro da Universidade de Coimbra. Lá, pediu autorização para frequentar algumas aulas na escola pública da universidade, onde foi contaminado pelos colegas de classe seculares com “ideias heréticas” que abalaram suas convicções. Passou a se interessar pelos “prazeres libidinosos” e a contestar os dogmas da religião. Arrependido, procurou o Tribunal do Santo Ofício para confessar suas culpas e foi absolvido. No ano seguinte, em 1808, frei Tibúrcio chegou ao Brasil como Capelão da Artilharia. Aos 30 anos, assumiu a redação da Gazeta do Rio de Janeiro.

Dom Rodrigo de Souza Coutinho, conselheiro real e braço-direito do Príncipe Regente D. João VI, era o responsável pelo jornal e tinha uma relação pessoal com o gazeteiro. Com a morte de D. Rodrigo, em 1812, a estrutura de trabalho na Gazeta sofreu profundas mudanças. O Conde das Galveias passa a fiscalizar atentamente o que seria publicado no jornal da Coroa, ao contrário de seu antecessor. D. Rodrigo delegava ao redator o poder de decisão e ainda franqueava o acesso direto do frade ao Príncipe Regente D. João VI.

Descontente com a nova burocracia do órgão, o frade se desentendeu com o conde e deixou a redação do jornal, lamentando nunca ter sido nomeado oficialmente como gazeteiro. Permanece à sombra do poder por mais 18 anos, mas não se sabe exatamente que cargos ocupa nesse período. Em 1830, se desliga formalmente do serviço religioso após um longo processo iniciado em 1811 “por motivos sólidos de consciência”.

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