Análise da Canvas sobre a Venezuela, onde a oposição começou a ser treinada em 2005: “Há uma forte tendência presidencialista. Como podemos mudar isso?”
No canto superior do documento, um punho cerrado estampa a marca da
organização. No corpo do texto se lê: “Há uma tendência presidencialista
forte na Venezuela. Como podemos mudar isso? Como podemos trabalhar
isso?”. Mais abaixo, o leitor encontra as seguintes frases: “Economia: o
petróleo é da Venezuela, não do governo. É o seu dinheiro, é o seu
direito… A mensagem precisa ser adaptada para os jovens, não só para
estudantes universitários… E as mães, o que querem? Controle da lei, a
polícia agindo sob autoridades locais. Nós iremos prover os recursos
necessários para isso”.
Análise da Canvas sobre a Venezuela: “Há uma forte tendência presidencialista na Venezuela. Como podemos mudar isso?” |
O texto citado não está em espanhol nem foi escrito por algum membro da
oposição venezuelana. O material, em inglês, foi produzido por um grupo
de jovens baseados na Sérvia. O documento “Análise da situação na Venezuela, Janeiro de 2010”,
feito pela organização Canvas, cuja sede fica em Belgrado, está entre
os documentos da empresa de inteligência Stratfor vazados pelo
Wikileaks.
O último vazamento do Wikileaks – ao qual a Pública teve
acesso – mostra que o fundador desta organização se correspondia sempre
com os analistas da Stratfor, empresa que mistura jornalismo, análise
política e métodos de espionagem para vender “análise de inteligência” a
clientes que incluem corporações como a Lockheed Martin, Raytheon,
Coca-Cola e Dow Chemical – para quem monitorava as atividades de
ambientalistas que se opunham a elas – além da Marinha americana.
O Canvas (sigla em inglês para “centro para conflito e estratégias
não-violentas”) foi fundado por dois líderes estudantis da Sérvia, que
participaram da queda de Slobodan Milosevic em 2000. Durante dois anos,
os estudantes organizaram protestos. Depois, juntaram o cabedal de
conhecimento em manuais e começaram a dar aulas a grupos oposicionistas
de diversos países sobre como se organizar para derrotar o governo. Foi
assim que chegaram à Venezuela, onde começaram a treinar líderes da
oposição em 2005. Em seu programa de TV, o presidente Hugo Chávez acusou o grupo de golpista e de estar a serviço dos Estados Unidos. “É o chamado golpe suave”, disse.
Os novos documentos analisados pela Pública mostram que se Chávez não
estava totalmente certo – mas também não estava totalmente errado.
O começo, na Sérvia
“Foram dez anos de organização estudantil durante os anos 90”, diz Ivan
Marovic, um dos estudantes que participaram dos protestos contra
Milosevic. “No final, o apoio do exterior finalmente veio. Seria bobo eu
negar isso. Eles tiveram um papel importante na etapa final. Sim, os
EUA deram dinheiro, mas todo mundo deu dinheiro: alemães, franceses,
espanhóis, italianos. Todos estavam colaborando porque ninguém mais
apoiava o Milosevic”, disse ele em entrevista à Pública.
“Dependendo do país, eles doavam de um determinado jeito. Os
norte-americanos têm um ‘braço’ formado por ONGs muito ativo no apoio a
certos grupos. Ooutros países, como a Espanha, não têm e nos apoiavam
através do Ministério do Exterior”. Entre as ONGs citadas por Marovic
estão o NED (National Endowment for Democracy), uma organização
financiada pelo Congresso norte-americano, a Freedom House e o
International Republican Institute, ligado ao partido republicano –
ambos contam polpudos financiamentos da USAID, a agência de
desenvolvimento que capitaneou movimentos golpistas na América Latina
nos anos 60, inclusive no Brasil.
Todas essas ONGs são velhas conhecidas dos governos latinoamericanos, incluindo os mais recentes. Foi o IRI, por exemplo, que ministrou “cursos de treinamento político” para 600 líderes da oposição haitiana
na República Dominicana em 2002 e 2003. O golpe contra Jean-Baptiste
Aristide, presidente democraticamente eleito, aconteceu em 2004.
Investigado pelo Congresso, o IRI foi acusado de estar por trás de duas
organizações que conspiraram para derrubar Aristide.
Na Venezuela, o NED enviou US$ 877 mil para grupos de oposição nos meses anteriores ao golpe de Estado fracassado em 2002, segundo revelou o The New York Times. Na Bolívia, de acordo com documentos do governo norte-americano obtidos pelo jornalista Jeremy Bigwood, parceiro da Pública,
a USAID manteve um “Escritório para Iniciativas de Transição”, que
investiu US$ 97 milhões em projetos de “descentralização” e “autonomias
regionais” desde 2002, fortalecendo os governos estaduais que se opõem a
Evo Morales.
Procurado pela Pública, o líder do Canvas, Srdja Popovic,
disse que a organização não recebe fundos governamentais de nenhum país e
que seu maior financiador é o empresário sérvio Slobodan Djinovic, que
também foi líder estudantil. Porém, um PowerPoint de apresentação da organização, vazado pelo Wikileaks, aponta como parceiros do Canvas o IRI e a Freedom House, que recebem vultosas quantias da USAID.
Para o pesquisador Mark Weisbrot, do instituto Center for Economic and
Policy Research, de Washington, organizações como a IRI e Freedom House
não estão promovendo a democracia. “Na maior parte do tempo, estão
promovendo exatamente o oposto. Geralmente promovem as políticas
norte-americanas em outros países, e isto significa oposição a governos
de esquerda, por exemplo, ou a governos dos quais os EUA não gostam”.
Fase dois: da Bolívia ao Egito
Vista através do mesmo PowerPoint de apresentação, a atuação do Canvas
impressiona. Entre 2002 e 2009, realizou 106 workshops, alcançando 1800
participantes de 59 países. Nem todos são desafetos dos EUA – o Canvas
treinou ativistas por exemplo na Espanha, no Marrocos e no Azerbaijão –
mas a lista inclui outros: Cuba, Venezuela, Bolívia, Zimbábue,
Bielorrússia, Coreia do Norte, Siria e Irã.
Segundo o próprio Canvas, sua atuação foi importante em todas as
chamadas “revoluções coloridas” que se espalharam por ex-países da União
Soviética nos anos 2000. O documento aponta como “casos bem sucedidos” a
transferência de conhecimento para o movimento Kmara em 2003 na
Geórgia, grupo que lançou a Revolução das Rosas e derrubou o presidente;
uma ajudinha para a Revolução Laranja, em 2004, na Ucrânia; treinamento
de grupos que fizeram a Revolução dos Cedros em 2005, no Líbano;
diversos projetos com ONGs no Zimbabue e a coalizão de oposição a Robert
Mugabe; treinamento de ativistas do Vietnã, Tibete e Burma, além de
projetos na Síria e no Iraque com “grupos pró-democracia”. E, na
Bolívia, “preparação das eleições de 2009 com grupos de Santa Cruz” –
conhecidos como o mais ferrenho grupo de adversários de Evo Morales.
Até 2009, o principal manual do grupo, “Luta não violenta – 50 pontos
cruciais” já havia sido traduzido para 5 línguas, incluindo o árabe e o farsi. Um
das ações do Canvas que ganhou maior visibilidade foi o treinamento de
uma liderança do movimento 6 de Abril, considerado o embrião da
primavera egípcia. O movimento começou a ser organizado pelo Facebook
para protestar em solidariedade a trabalhadores têxteis da cidade de
Mahalla al Kubra, no Delta do Nilo. Foi a primeira vez que a rede social
foi usada para este fim no Egito. Em meados de 2009, Mohammed Adel, um
dos líderes do 6 de Abril viajou até Belgrado para ser treinado por
Popovic.
Nos emails aos analistas da Stratfor, Popovic se gaba de manter
relações com os líderes daquele movimento, em especial com Mohammed Adel
– que se tornou uma das principais fontes de informação a respeito do
levante no Egito em 2011. Na comunicação interna da Stratfor, ele é
mencionado sob o codinome RS501.
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