domingo, 23 de janeiro de 2011

Encontro inadiável

A polícia deve criar uma nova relação com a população em todo o Rio de Janeiro, diz Eliana Silva, doutora em Serviço Social. A Luciana Bento. Foto: Jonas Cunha

Por Luciana Bento

Integrante do Conselho Nacional de Segurança Pública, Eliana Silva acredita que a polícia deve mudar sua relação com a população em todas as regiões do Rio, não somente aquelas em que há UPPs

A principal dedicatória que Eliana Silva faz em sua tese é para Renan da Costa Ribeiro, “uma criança de 3 anos que, como tantas outras residentes das favelas cariocas, teve a vida abreviada por razões as quais não pôde conhecer”. E não é preciso ir longe para entender o porquê da lembrança: logo nas primeiras páginas, Eliana narra, de forma emocionada, o assassinato do menino, ocorrido à luz do dia, em frente à sua casa, na Favela da Maré, no Rio de Janeiro. Os autores dos disparos, feitos a esmo e sem qualquer razão aparente, eram policiais.

O episódio marcou a vida desta paraibana que chegou ao Rio aos 7 anos e fez da vivência na favela um diferencial de seu olhar para o mundo. Tanto que utilizou a própria história como ponto de partida para escrever a tese O Contexto das Práticas Policiais nas Favelas da Maré: A busca de novos caminhos a partir de seus protagonistas, prestes a virar um livro que será publicado pela Aeroplano Editora.

Doutora em Serviço Social pela PUC-Rio, coordenadora da ONG Redes da Maré, diretora da Divisão de Integração Universidade Comunidade da UFRJ e membro do Conselho Nacional de Segurança Pública, Eliana questiona os rumos das políticas de segurança pública no Rio de Janeiro e no País, com o mérito de colocar a comunidade desses territórios como protagonistas de uma situação cuja solução é esperada há anos.

Carta Capital: As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram uma das principais bandeiras da reeleição do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Que avaliação a senhora faz da implantação do projeto até agora?
 
Eliana Silva: É preciso reconhecer a relevância de garantir segurança pública para populações que nunca tiveram esse direito no Rio.  E o fato de esta ter sido uma bandeira do atual governador para se reeleger sinaliza que o projeto ganhou a simpatia e a credibilidade da sociedade carioca. Mas o que esperar dessa experiência, fundamental para o ordenamento de áreas onde os policiais só conseguiam entrar com carro blindado? Penso que há um longo caminho para garantir uma nova ordem que se materialize em uma política pública. Faço essa afirmação não com descrença, mas com o reconhecimento de que qualquer mudança de paradigma deve ser acompanhada da atenção e compreensão sobre como as pessoas estão incorporando essa iniciativa. Também é preciso refletir sobre o papel que cada cidadão deve assumir para que a médio e longo prazo ela se torne sustentável.

CC: E o que esperar do futuro das comunidades já ocupadas pelas forças policiais?
 
ES: Espero, sinceramente, que o futuro das favelas que receberam as UPPs seja o de mudanças no campo dos direitos. Alguns deles, básicos, começam a ser atendidos, embora discursos “civilizatórios” ainda existam. Mas o mais significativo vai ser o reconhecimento do direito à segurança para populações, que não vislumbravam essa realidade em seu cotidiano. Quando fiz a pesquisa de campo para a minha tese, entrevistei 500 moradores das diferentes favelas da Maré. E identifiquei que os moradores não reconheciam a segurança pública, garantida pelo Estado, como um direito possível de ser contemplado. Isso, apesar de sinalizarem que o maior problema era a violência gerada pelos conflitos entre os grupos armados que dominavam as favelas da Maré e a polícia.

CC: Sua tese aborda de forma crítica a ação que até então a polícia fazia nas favelas. A senhora acha que existe diferença de tratamento entre aquelas ocupadas, sob vigília dos meios de comunicação, e as ainda dominadas pelo tráfico, caso da Maré?
 
ES: Historicamente, a polícia agiu de maneira truculenta e violenta nas favelas, com o uso de formas bélicas para lidar com as populações e a falta de reconhecimento daquelas pessoas como cidadãos de direitos. O que se vê no caso das favelas onde há UPPs é que a polícia tenta estabelecer outra forma de relacionamento com os moradores dessas localidades. Mas, para mim, a grande questão é indagar as razões de a polícia não tornar essa uma prática para todas as áreas da cidade onde atua.

Fiz a pesquisa para a tese também no 22º Batalhão de Polícia, localizado em uma das favelas da Maré e onde trabalham quase 700 profissionais (entrevistei 10% desse contingente). Na ocasião, chamou-me a atenção a distância que separa os moradores da Maré e os policiais que nela trabalham, sem qualquer interação ou reconhecimento por parte da polícia sobre a importância de a população participar do Batalhão. Do mesmo modo, os moradores não se aproximam da polícia por temerem algum tipo de represália dos grupos criminosos locais.

CC: Um ponto de sua tese é que a polícia muitas vezes vê os moradores das favelas como apoiadores do crime e coniventes com os traficantes.
 
ES: A visão que predominou até então foi uma forma preconceituosa e discriminatória que considerava os moradores cúmplices e suspeitos de participarem de redes ilícitas.  Os profissionais da segurança pública e parte da sociedade do Rio de Janeiro desenvolveram uma visão sobre os moradores das favelas em razão do que era apresentado pela mídia e, óbvio, a violência sempre predominou nos noticiários sobre essas populações. Dessa forma, no enfrentamento entre polícia e grupos que atuam no tráfico de drogas nas favelas, há uma guerra de extermínio, sem considerar os direitos fundamentais da população. Assim, cerca de 1,2 milhão moradores do Rio de Janeiro são tratados como a população civil do exército inimigo.

CC: E como garantir que a truculência policial contra os moradores de favelas seja abolida, não só em comunidades ocupadas pelas UPPs?
 
ES: Há um longo caminho a ser perseguido, mas uma questão fundamental é a formação desses profissionais. É preciso repensar a lógica e o enfoque das forças de segurança pública na formação de seus quadros. Outro instrumento é o controle que a sociedade deve exercer. Quanto mais a população tem acesso aos mecanismos e meios para cobrar seus direitos, mais diminuirão as violações exercidas pelos agentes dos estados em qualquer parte da cidade.

CC: O sucesso das UPPs pode exportar o modelo para outras cidades com altos índices de criminalidade? Qual a sua avaliação sobre essa intenção?
 
ES: As formas de criminalidade nas grandes cidades não se manifestam da mesma maneira. Replicar experiências em um país tão complexo e grande como o Brasil requer muita atenção e a devida compreensão das condições de reprodução da criminalidade de cada área. Certamente, há muito que refletir, avaliar e discutir sobre o que pode ser bom para um determinado estado ou para outro.

CC: A senhora questiona o conceito de direitos fundamentais, quase sempre restritos a saneamento, saúde e educação. Que serviços devem ser garantidos aos moradores das favelas?
 
ES: Os moradores das favelas, assim como os outros moradores da cidade, devem ter acesso a todos os direitos fundamentais para se viver com dignidade. Isso incorpora acesso a equipamentos e serviços tangíveis, como rede de água e esgoto, rede pluvial, pavimentação, arborização de ruas, construção de escolas e postos de saúde, equipamentos de arte e cultura, acesso à Justiça e outros. Mas, também é direito fundamental a possibilidade de ir e vir, além de conviver nos espaços sociais sem sofrer discriminações de qualquer ordem e ser reconhecido como um cidadão de plenos direitos. Mas não é isso o que acontece normalmente, em especial com os territórios populares e seus moradores.

CC: Com a ocupação do Complexo do Alemão, a sociedade assistiu, em tempo real, a uma operação que poderia estar nas telas do cinema. Que papel filmes como Tropa de Elite cumprem no imaginário da sociedade com relação ao combate ao crime?
 
ES: Tropa de Elite é uma ficção que se fundamentou em fatos e histórias reais. Como obra de arte, ele é apropriado de formas distintas por espectador. Seu mérito, na minha percepção, é funcionar como um instrumento para que parte significativa da população perceba a segurança pública como tema a ser tratado pelo conjunto da sociedade, não restrito à esfera das forças de segurança. Historicamente, a sociedade não se colocou diante da responsabilidade e com o envolvimento necessário para garantir esse direito a todos. A partir de obras como a do diretor José Padilha, esse processo pode ser ampliado.

Por outro lado, determinadas visões sobre o enfrentamento ao crime e relações estabelecidas nas forças de segurança pública são apresentadas de maneira parcial e superficial no filme, criando juízos e cristalizando ideias questionáveis quando se pensa na garantia do direito à segurança pública para toda a sociedade. A ênfase na ideia de que o Batalhão de Operações Especiais, o Bope, é incorruptível e que pode agir de forma violenta, no modelo do justiceiro clássico, é altamente questionável.

CC: A integração favela e asfalto é a saída para a superação desses estereótipos?
 
ES: Penso que a palavra-chave deste momento é encontro. Não comungo a ideia de que existe uma falta de integração entre as diferentes partes da cidade. O que sempre houve e ainda perdura é a valorização social, cultural, econômica e política de determinadas regiões em detrimento de outras, com o agravante de que no caso das favelas há uma visão preconceituosa, carregada de estereótipos, sobre as pessoas que nascem, crescem e vivem ali. [CartaCapital]

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