Rodolpho Motta Lima
Algumas vezes me manifestei aqui a respeito do Supremo Tribunal
Federal, para mencionar procedimentos no mínimo discutíveis, nem
sempre ajustados com os interesses da sociedade, no seu clamor por
justiça. Em alguns momentos, coloquei mesmo em dúvida – como ainda
coloco – não só a forma de escolha de seus membros como a natureza
vitalícia dos cargos. Muito recentemente, um dos seus ministros,
referindo-se ao presidente do STF que acabara de deixar o cargo máximo
da Corte, acusou-o de tentativas de manipulação das decisões lá
prolatadas, algo tão inadmissível como o bate-boca que então se
instaurou a respeito do assunto...
Felizmente, porém, nem tudo são espinhos nessa área. Trago agora
novamente o STF aqui para o meu texto, mas com outro objetivo, que é de
enaltecimento de uma das suas mais dignas e justas decisões. Refiro-me
àquela que considerou válido o sistema de reserva de vagas (conhecidas
como “cotas”) para o ingresso dos afrodescendentes em nossas
universidades, em julgamento provocado por ação impetrada pelo DEM – e
não por acaso... – que arguia a ilegalidade da medida, por uma série de
“inconstitucionalidades” invocadas, com argumentos vários, como a
desvalorização da meritocracia, o risco da/ afirmação de uma visão
racista, o desrespeito à autonomia universitária, e diversos outros
que, no fundo, escondem a hipocrisia ancestral de confundir letras
mortas da lei com a realidade, “presumindo” igualdades cuja negação a
prática do nosso cotidiano denuncia a cada instante.
A causa em questão não é apenas a causa de um grupo étnico
historicamente penalizado e discriminado em nosso país. É uma luta de
profundo sentido ideológico, um embate de cidadania, que envolve
princípios de afirmação da diversidade e de respeito humano à
alteridade. É mais um capítulo dessa saga que, partindo da ignomínia da
escravidão, ainda espalha cicatrizes odiosas nos direitos mais
fundamentais devidos aos componentes da sociedade humana.
Foi em nosso país que, nas Américas, a escravatura experimentou o
maior período de duração. Fomos o último dos países americanos que a
extinguiu. E como as razões utilitárias de sua extinção não passaram
por preocupações que buscassem então, paralelamente, as indispensáveis
possibilidades de integração dos alforriados à sociedade, o que se vê,
de lá para cá, é a disfarçada perpetuação de um desnível social degradante, que – alguém já o disse – transformou os “escravos do senhor” em “escravos do sistema”.
Argumentar com algo que nos remete à discutível tese do “homem
cordial brasileiro” para afirmar que inexiste o preconceito racial no
país, ou que as oportunidades são iguais para todos, ou que a etnia
branca não deve responder pelo problema dos negros, que já teriam vindo
da África como escravos (tese defendida, por exemplo, pelo Senador
Demóstenes Torres), parece ser discurso de quem ou não quer ver a
realidade circundante com os olhos da verdade (os ingênuos, os
alienados, os desinformados), ou, pior, de quem gostaria de que ela
permanecesse como é (visão etnocêntrica, elitista, opressora, racista –
pode-se escolher o adjetivo).
O sistema de cotas faz parte do que se deve reconhecer como ações
afirmativas, políticas de Estado eficazes que se destinam a corrigir ou
remediar desvantagens sociais provocadas por estigmas preconceituosos.
Tem como belíssimo fundamento a constatação de que, para corrigir - sem
verborragias paliativas, mas com atitudes concretas - distorções que
só podem envergonhar a nossa sociedade – e que saltam aos olhos- é
preciso dar tratamento desigual para os desiguais. E de forma até
radical (para quem quiser entender assim), porque essa é uma situação
que nos lembra, analogicamente, a frase de Betinho,cunhada nos anos 90:
“Quem tem fome tem pressa”.
As cotas não são as melhores opções, não são soluções mágicas e são
conjunturais . Bem melhor seria que já dispuséssemos de todos os
mecanismo de igualdade e de inclusão que as tornassem desnecessárias .
Elas são, porém, um auspicioso episódio no longo percurso ainda a
trilhar, em que não se devem esquecer, além dos afrodescendentes, todos
os outros segmentos desvalidos na sociedade, que estão a exigir outras
medidas de implantação da democracia plena. Não se pode deixar de
considerar, porém, para que se perceba o que está em jogo em ações como
essa, que, no segmento dos 10% dos brasileiros mais pobres, 75% deles
são negros ou pardos.
Para terminar, um argumento trazido ao pleito pelos estudantes do
Diretório Acadêmico da UERJ (primeira universidade que instituiu as
cotas entre nós), e confirmado por autoridades educacionais que se
debruçam sobre a matéria: já decorridos 10 anos da aplicação do
critério, a percepção é de que, além de possibilitar um ambiente
universitário mais democrático (a Universidade pública é do povo), a
presença dos cotistas revela, objetivamente, que esses estudantes têm
sabido aproveitar as oportunidades que lhe foram concedidas, com
desempenhos de superação que os colocam no mesmo nível dos não
cotistas, quando não em patamar superior a estes.
A decisão do STF é para ficar nos anais da história desse país, que,
mesmo às vezes a passos vagarosos, vai buscando caminhos para a
superação de suas gritantes injustiças sociais.
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