sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Língua nos Jornais

Quando comecei a escrever em jornal, e depois em sites, meu projeto era discutir “análises” de fatos linguísticos feitas na mídia. A constatação é que, em geral, são simplórias. Na melhor das hipóteses, corrigem-se erros a partir de algum quebra-galho do tipo manual de redação ou, pior, de listas de erros e soluções. A ideia, pasmem, é defender a língua, ou mesmo a gramática. Ninguém se dá conta de que uma língua não é só sua modalidade escrita (ou sua ortografia!), nem mesmo só a norma dita culta, e, principalmente, que nem esta é uniforme.

Digo que essa é a melhor das hipóteses porque há coisas bem mais horrorosas, como relacionar usos informais da língua com incapacidade de pensar, por exemplo. Ninguém lê sobre diversidade linguística (inter e intralinguística) e sobre mudanças pelas quais as línguas – inclusive a nossa – passaram e continuam passando. Um dos resultados é que pessoas que escrevem “certo” pensam que escrevem como Machado ou Vieira ou Camões, o que só mostra que não conhecem esses autores.

Vou comentar alguns casos da semana. A propósito de um bilhete (que os fotógrafos captaram) que Dilma passou a duas ministras, em uma reunião, um leitor da Folha escreveu: “Sobre o bilhete de Dilma, a nossa “presidenta”, feriu a gramática. Usa-se “porque” ao responder e “por que” ao indagar” (Márcio Félix de Freitas, em 01/09/2012).

A explicação está longe do que dizem as gramáticas, que explicam que “por que” se usa em interrogativas, sim, mas nunca que “porque” se usa para “responder”. Informam que é para juntar uma oração causal ou explicativa a alguma outra. Nada se diz sobre introduzir respostas. Que pode ser um dos casos, mas só um. O pior, porém, não é a explicação fajuta. O pior é a redação do bilhete. Pela gramática que o Sr. Márcio supostamente segue, o começo deveria ser (é uma alternativa entre outras) “Em seu bilhete (…), feriu a gramática”.

“Sobre o bilhete, a presidenta feriu” seria um daqueles vícios de linguagem, um anacoluto – segundo a gramatiquinha simplificada de Márcio Félix. Segundo as listas de erros, o locutor deveria continuar o pensamento (sejamos cordiais) que começa com “Sobre o bilhete”. Tal continuação poderia ser: “tenho uma observação a fazer” (entre outras).

Invertendo a ordem, a coisa fica clara: “tenho uma observação … sobre o bilhete” é uma estrutura aceitável. “Nossa presidenta feriu (…) sobre o bilhete” deixa claro que este final e aquele começo não poderiam fazer parte da mesma “estrutura”. Ele também poderia aproveitar a chance para usar dois pontos no lugar da vírgula. E tudo se ajeitaria. O leitor pode fazer o teste.

Mas, antes que pensem que virei corretor, explico que o Sr. Márcio não errou. Só errou pela gramática que ele quis valorizar (mas não conseguiu aplicar) e que ele dá a entender que é a única. A construção que emprega pode ser bem explicada pelas gramáticas funcionalistas: o começo é uma “apresentação” do tema, ou do tópico, sobre o qual, em seguida, o locutor faz uma declaração.

A crítica é que ele não consegue seguir a gramática que acusa outros de não seguir. E, convenhamos, em uma questão menor – a ortografia. Não estou dizendo que leis ortográficas não precisam ser seguidas, mas insisto que se trata de uma questão menor – tanto que elas podem ser revogadas por lei, o que não acontece com estruturas sintáticas. A carta é um caso de roto falando do esfarrapado…

Aliás, o Brasil está cheio de gente que sabe ortografia! Fico espantado com tanta sabedoria! Somos um país de revisores! Sabichões têm orgasmos diante da chance de criticar a grafia do nome da bola da Copa (brazuca) e esse “por que” da Dilma. É o lado mais lamentável e pobre do nosso bacharelismo.


* * *

A ombudsman da Folha (02/09/2012) resume várias cartas que reclamam de erros gramaticais. Leitores citam formas como “servidor que manter greve…”, “quanto menos se expor, melhor…”; e um faz a seguinte pergunta: “Estaria a Folha liderando algum movimento para eliminar o modo subjuntivo do nosso idioma?”.

Suzana Singer informa que há no jornal um Programa Qualidade, com cinco pessoas, que promove ações para melhorar o conhecimento de gramática na redação. E conclui: “É utópico pensar que um jornal diário terá um “erro zero”, mas o leitor está certo ao exigir que ao menos os “grotescos”, aqueles que doem no ouvido, sejam eliminados”.

Duas observações distintas: não sei se os membros do Programa Qualidade conhecem bem a questão. Minha aposta é que não, mas juro que gostaria de estar enganado. Se não se derem conta de que todas as variações podem ter uma boa explicação baseada na análise da língua falada, em como fatores faixa etária dos jornalistas e, principalmente, nos rumos da deriva da língua, pode ser que os resultados pretendidos não apareçam nunca!

É que não se trata apenas de saber gramática. Há muitas evidências de que certas questões (como o futuro do subjuntivo de certos verbos irregulares e a flexão do verbo “haver”) são mais do que batidas na escola, com resultado quase nulo. Outra questão é o que dói no ouvido. Como deveria ser óbvio, aquelas formas não doem no ouvido dos que as escreveram. O que deve doer nos deles são expuser e mantiver…

Por falar nisso, a ombudsman escreve, em outro trecho: “Em vez de antecipação, o jornal deveria focar o que está em pauta”. No meu ouvido, por exemplo, o que dói é focar. Mas isso é entre mim e meu otorrinolaringologista… 

Sírio Possenti, linguista, professor na Unicamp 

No Blog do Sírio

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...